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A mostrar mensagens de 2023

Ceia de Natal

A Dona Adelaide tinha um Perú. Não era sempre o mesmo, mudava todos os anos, por alturas do Natal, mas nós não sabíamos. Agora que se pensa nisso, onde é que nos restantes dias, ela meteria o perú, , que não se dava por ele no pátio do prédio onde representávamos o papel de crianças - eramos muitos - e brincávamos, aproveitando todo o tempo da infância, que no futuro nunca mais seriamos vistos com bons olhos se brincássemos, na monotonia formal da idade dos adultos. A Dona Adelaide teria seguramente o seu perú numa das divisões da casa, como se fosse um animal doméstico, que estamos certos de que  seria. Há quem tenha papagaios, periquitos, lagartos, ela tinha um perú. Chegámos várias vezes, quando nos lembrávamos, de colar as orelhas à porta de casa de Dona Adelaide, a ver se captávamos sinais de vida do dito. Só na altura do Natal é que o animal dava contas de que estava vivo, saia à rua, quer dizer ao pátio e por aí andava uns dias, bastante descontraído, até que a Dona Adelaide

AS LAGOSTAS

O meu pai desfolhou a vida a equilibrar-se nos patins, sem saber andar de patins. Não o critico, porque eu desfolho a minha equilibrando-me sei lá em quê, sem saber se me equilibro o suficientemente bem para andar sem quedas aparatosas. O meu pai gostava de chamar atenções sobre si e muitas vezes arriscava números complicados. Era um provocador, e como em todas as artes circenses e outras, mesmo as dos gestores de fundos, umas vezes acerta-se, outras, menos. A firma onde trabalhava – era assim  que se chamavam as empresas nesse tempo – tinha uma fábrica de lâmpadas, na zona oriental de Lisboa, e fabricava os melhores televisores do mercado. O mercado sul-americano e especialmente o brasileiro,  tinha um grande potencial de consumo de televisores, e devido à proximidade de termos uma língua mais ou menos parecida, os executivos holandeses da firma, consideraram Portugal como a plataforma de exportação de televisores para a América latina. Alugaram um Jumbo da Boeing e o meu pai,

AS BATAS

  O avental é uma peça de roupa que consiste num resguardo de tecido ou de pele, com ou sem peitilho, que se amarra à cintura e que serve para proteger a roupa enquanto se desempenham determinadas tarefas, domésticas ou profissionais. O bibe é uma espécie de avental com mangas para resguardar a roupa das crianças. Desconheço o nome da peça de roupa que não é um bibe mas que é um avental como se fosse um bibe, para adultos, que muitas mulheres conterrâneas nossas, vestem a diário como peça de roupa fundamental e exclusiva. Poderá ser bata, o que resolve a dúvida. A minha avó Maria, era uma mulher moderna. O que dá para muitos entendimentos. Era uma mulher desembaraçada, solta, dada a empatia búdica com todas as ideias, modas e estilos. Tão desprendida como se vestia e desarranjava, que podia dar a ideia de alguma afectação, uma declaração de princípios. Apresentação com o propósito de chocar, ou somente vincar, a sua posição no mundo. Que era de absoluta neutralidade e compree

BEIJOS REPENICADOS E BONS

  BEIJOS REPENICADOS E BONS Os beijos têm muitas formas de se beijarem, num espectro que vai do formal, ao familiar, ao amante, ao erótico, e nas últimas das suas consequências e propósitos, nem sequer têm um nome porque possam ser chamados. A minha tia Custódia dava-os repenicados e sonoros e era a sua especialidade. Nunca mais ninguém me deu beijos assim, nem mesmo a minha prima, sua filha, que herdou o talento da mãe para dar beijos repenicados. Não posso dizer que tenha sido sempre um apreciador desses beijos, e lembro-me longinquamente  quando - por ser pequeno - estava preso aos seus braços e ela desatava nesse frenesim de beijadela, sentia-me sufocar e não compreendia as razões do seu desvario. Essa manifestação quase exagerada, mexia comigo, que sempre fui um delicodoce com muitas tendências para o amuo. Ela deliciava-se e fazia jeitos de grande felicidade e com o tempo – esse grande escultor - fui compreendendo que esse seu exercício sonoro e de sucção compassada, er

FALAR SOBRE A MARIA.

  FALAR SOBRE A MARIA. As vidas não são exemplos de vida, mas algumas podiam ser. Apesar das valorizações pessoais e subjectivas do bem e do mal, há pessoas, talvez sem se darem conta disso, até porque não se estimam particularmente, ou se acham minúsculos (que todos somos) e absolutamente anónimos, deixam na sua passagem por este plano de existência, um rasto de luz e esperança. E nem sempre, ou quase nunca, são os “grandes” deste mundo, que deixam uma pegada com as mãos lavadas e nítidas. Há vidas mais sofridas outras menos, há de tudo, de muita a pouca felicidade, sucesso, preenchimento e o que se queira. O mundo entre outras coisas, não devia estar dividido com baias, devia sem amplo e desafogado de muros e redes e todos termos o direito de pertencer a todo o lado, independentemente da língua que falamos e dos atavios que temos em cima de nós, incluindo as tonalidades da nossa pele, mas tudo isso são romantismos e sonhos ingénuos. O “pedaço” onde residimos, que amanhã pod

ROLLS-ROYCE

  Quem anda num Rolls-Royce, nunca mais é a mesma pessoa. Quem anda num Rolls-Royce em pequeno, nunca mais vai ser a pessoa que sonhou ser a não ser que ainda assim a queira ser, apesar do abalo sísmico de ter andado num Rolls-Royce. O bairro do Restelo em Lisboa, nos anos sessenta do século passado, antes da contaminação das embaixadas e das residências de indivíduos de duvidosa proveniência, cheios de dinheiro malcheiroso e desconfiável, era um bairro rico, mas pacato. Familiar, uma certa burguesia abastada lisboeta, que não era efusiva. Eram tempos em que se não dava nas vistas e quem tinha Rolls-Royce não andava por aí, a anunciar ao mundo, que o tinha. O ambiente do bairro acompanhava o ambiente tépido e dormente de uma capital muito pouco cosmopolita e de um império provinciano e humilde. Nada de particularmente interessante acontecia na cidade, a não ser as novelas das traições, dos adultérios, das misérias familiares humanas, sempre as mesmas, sempre repetidas, sempre m

AMOR INCONDICIONAL É UMA DOR DILACERANTE E TRISTE

    Nessa circunstância ausente de compreensão, sem qualificação apropriada, nessa desumanidade que é ainda mais ausente – se pode ser – da chama de simpatia do coração humano, algo que brota em jorros incontroláveis, umas trevas, algo com uma dimensão que só pode ser de outro mundo, diabólico, que não é possível entender, destaca-se um instantâneo de alguns escassos segundos, pouco mais do que uma imagem, com pouco movimento. Uma imagem, que passa diante dos nossos olhos, focados num ecrã, olhos frios, secos, que não lacrimejam, habituados a imagens violentas frequentes. É no chão de uma sala de hospital. As lajes desse chão  seriam brancas, não estivessem manchadas a vermelho. O olhar é, entre outras manifestações mais ou menos subtis e pessoais de amor incondicional de uma mãe ao seu filho, a cumplicidade mais forte. É no olhar mesmo que esquivo, de ambos, que se descodifica o código do amor. Não há outro olhar como esse. Nesse cenário infelizmente real, uma mulher ainda jov

Era a poliomielite

José andava paraliticamente coxo. Doença antiga, de criança. E tinha os dentes encavalitados. Os que recebem as pessoas com sorrisos. Por isso sorria pouco e falava com a boca entreaberta para quem observa, e meio-fechada, na sua avaliação e vista sob a sua perspectiva. José era o único menino do prédio que não ia para o pátio das traseiras brincar com os outros meninos. Talvez por ter esse andar bamboleante, ou por não poder emitir uma opinião sem que um oceano de perdigotos se soltasse rebelde, da sua boca que não tinha a culpa. Um azar nunca vem só. A ele tocaram-lhe pelo menos dois, o que não foi justo, mas enfim os homens não se devem meter nas coisas dos deuses nem emitir opiniões sobre assuntos e decisões celestiais. Foi uma pena que nunca tivesse brincado connosco. Fizemo-nos homens e uma barreira a separar-nos, nunca ganhámos intimidade. Passava os dias empoleirado no beiral da sua marquise que dava para o pátio, a ver-nos brincar. Como não podíamos usufruir da sua compa

A MÁQUINA DE TECLAR PENSAMENTOS

Temos em nós uma máquina que tecla os pensamentos. Como se fosse uma máquina de escrever, que não é mecânica nem um objecto. É uma máquina biológica, muito mais complexa, de tal forma que ainda não se sabe como ela tecla os pensamentos. Fruto da sua livre vontade, ou de uma intenção pessoal, esta máquina que estará pousada numa secretária dentro da nossa cabeça, não tem um segundo de descanso. Desde que se abriu o escritório com o iniciar de uma nova vida, ela, formiguinha incansável, tecla e tecla dia e noite, produzindo um número inatingível de palavras em sequências de frases, que dariam numa existência – o tempo que o escritório está a laborar – para dar várias voltas ao mundo, ou mesmo, estendidas em linha direita e recta, ou mesmo chegar à lua. A Máquina de teclar pensamentos produz ideias profundas e complexas, mas também tecla asneiras e impropérios. Sendo humana, tem muita tendência para o erro. Por vezes também encrava e fica a teclar na mesma tecla provocando grand

É UM SUPONHAMOS

  Uma vida a ver passar. Dias a seguir a noites, pessoas, meios de locomoção, dinheiro pelas mãos, oportunidades, sonhos, ilusões, dissabores. A ver passar tanto e tão rapidamente, sempre a ver passar, a julgar-me idiota, em ocasiões, porque só via passar. A não agarrar nada, nem com a vontade nem com os mãos. E todos a acenarem e eu na incerteza de que estariam a meter-se comigo, eles também a passar e a passarem por eles. Depois desse fluxo torrencial e fugidio, aceitei ser tutor de duas galinhas poedeiras, e usufrutuário de um pequeno terreno agrícola que tem no seu inventário três oliveiras, um limoeiro, uma laranjeira e o que julgo poder chamar-se uma clementineira , mas não arrisco certezas. E flores, abundantes e diversas, que até sermos devidamente apresentados, não lhes sei o nome. Hoje é o dia em que deixei de ver passar: consegui ser admitido no Jardim das Delícias. Passado então para o outro lado, vejo-vos agora a passar, no portão de entrada do meu novo jardim. Aceno

O CONVIVIO DA ALDEIA

  Nos domingos, nas aldeias destes interiores, o silêncio ouve-se ainda mais que nos outros dias da semana, intervalado pelo canto dos pássaros, ao despique, sendo na primavera, e sem contrapontos quando o outono vai preparado o mundo para a grande noite do inverno. É quando os velhos, que é um nome muito mais respeitável que idosos, vão ao Convívio na bela aldeia de Ana de Aviz. As senhoras, ainda com vaidades, arranjam-se para sair. Os homens, mais arredados dessas coisas da compostura, vão como estão, como andam todos os dias. A boina, ou boné, é que não podem faltar e no jeito de os pôr na cabeça, ora enterradas, ora simplesmente deixadas cair, pala para o lado ou inclinada, são essas as suas vaidades, que dizem muito sobre quem a usa. O Convívio tem no rés-do-chão, uma biblioteca com livros de temas variados, até enciclopédias. Como não é frequentada, os livros provavelmente deprimidos por não receberem ninguém para os folhear, desleixaram-se, descompuseram-se, descaindo das

O PROFESSOR

Como um aventar discreto, que mal se apercebe, que vai e volta, um sopro ínfimo que ainda assim refresca, neste caso, as recordações que se apresentam trazidas de uns confins, interior nosso, por esse vento quase não vento que é o nosso pensamento. Por vezes são partes incompletas, que pedem paciência e um labor de filigrana, para revelarem essa pequena história do passado. Outras, são tão vivas e completas, como se fossem de ontem, revelando nesses fotogramas que afloram ao nosso pensamento, episódios de pessoas que já não estão cá num volume a três dimensões, que habitam agora permanentemente a nossa casa interior. Extinto o corpo, a sua substância colou-se a nós, forra-nos. Os que chamamos de nossos, são os de sangue e todos aqueles que adoptamos com a grande naturalidade de serem escolhas evidentes. Aprendi a ler e a escrever com uma caligrafia bem desenhada e contida no espaço das linhas paralelas que pautavam as folhas da escola primária. Nas palavras, fui polido e cumprido

Vá para fora, olhando para dentro.

  No verão podemos divagar e flautear a cabeça nas coisas sem peso, acompanhados, e a pedir, pelo corpo que reclama lassidão, descompromisso, prazeres do momento. São os dias alongados, quentes, o tempo das férias, os dias em que os relógios do tempo fingem que se detêm, para os praticantes das artes da preguiça. No verão, o país debruça-se em fila num beiral a olhar para o mar, antes de pôr os pés de molho nas praias que lhe desenham os contornos. Dão costas ao que resta do país interior, que é a maior porção do país. E no interior, para quem conhece os segredos e tem curiosidade de procurar, também há praias para refresco dos pés. Casal de São Simão é uma aldeia de xisto, no concelho de Figueiró dos Vinhos. Reza a lenda (as lendas são as realidades oníricas que dão densidade aos lugares e as pessoas) que um casal de passeantes a descobriu, em ruínas, e comprou uma casa que renovou. Chamaram os amigos que compraram outras casas e agora é uma pequena comunidade de amigos, com um

AO SUL

Em tardes calmosas, Cativado pelo cântico repetitivo dos grilos, Sonho, Que sou um poeta andaluz Sentado na muralha no cimo da colina, A sonhar versos. Colorindo-os com as cores intensas Que fazem os finais de dia, Quando o sol se põe na ténue linha do mar, No outro lado da Ria Formosa. Os pescadores de ostras no seu afazer curvado, Não dão conta da minha presença, Nem sabem que estou a navegar versos, Ao Sul, nas tardes calorosas desta felicidade, de que são feitos os meus sonhos. E deixo-me estar, Imaginando epopeias utópicas e doces, Esperando que a noite me venha embalar.

AOS AMIGOS

  É quase certo que vivemos uma só vida.  Nesse tempo em que vestimos um corpo e somos animados por uma alma, na verdade, vivemos inúmeras vidas, imersos em ambientes vários, amigos vários, família, experiências e profissões. E é o juntar de todas essas pequenas vidas que fazem a nossa linha do tempo, a linha que nos leva do principio ao fim assinada com o nosso nome. Depois de muitas peripécias, a maior e mais enriquecedora de ser pai, resolvi que chegava o momento de ganhar perspectiva. Uma visão panorâmica desta aventura mirabolante que é viver. Para isso, decidi passar a minha pessoa como herói e protagonista principal de todos os episódios, para um papel de figurante, e sentar-me comodamente na poltrona, a assistir impávido e reconfortado ao andamento das coisas que me rodeiam, compreendendo-as, melhor ou não, assim o espero. Passar a ser um observador dos cenários que se desenrolam diante mim, sem que eu estivesse no palco. Para conseguir essa tranquilidade era fundamen

ANDORINHAS

o fim da tarde, ao redor da minha varanda, é estimulante o voo desenfreado e desinibido das andorinhas, que muitas, animam estes finais de dia em paisagens no campo. Parecem doidas, extravagantes, e se calhar são, voando velozmente, fazendo razias aos objectos fixos, mudando constantemente de rumo, evitando as outras, e são tantas que um observador como eu, se assusta sem razão, pensando que elas não se vão entender nesse seu voar errático. Depois do inverno em que o céu plúmbeo não autorizou o voo das aves, agora é uma explosão de vida, de chilreios estridentes. Esta tela que está sobre nós, enche-se de actores principais e secundários e de muitos figurantes. As andorinhas parecem crianças a brincar, elétricas, incansáveis. Voam com grande destreza, enchem a paz dos ares, com a sua vivacidade, são os últimos personagens a entrar em cena, antes que se abata sobre todos, observados e observadores, o crepúsculo, que na primavera e quando os céus estão despejados e limpos, se pintam d

O SONHO

Também eu não conheci o sonho da minha avó, aquele que na urdidura de todos os fios de sonhos, faz o grande tapete-sonho para forrar a memória que deixamos para os outros. Não me deu tempo para saber. Queria ser eterna na sua existência terrena, não apostou em mais nada senão aproveitar os instantâneos, pôs o tempo para trás das costas e não queria saber dele para nada, e de repente, deu-lhe a pressa de partir e deixou-me cheio de perguntas que não lhe pude fazer. Que sonhos teve de seus Maria, o que sonhou para mim, o neto substituto do filho que perdeu, num patético acidente de aviação, num lugar longínquo, num nevoeiro cerrado quando ia cantar para os militares que defendiam uma incongruência. Terei sido o seu grande sonho, depois de se ter esfumado o anterior, e para seguir em frente com a sua vida, teve de me sonhar a mim, para encher o espaço vazio, órfã de um filho, o menino de ouro de sua mãe. E quando as mães amam os filhos, a orfandade fica numa dor sem possibilidade de

NÓS NA CABEÇA

  Esta história de falarmos do meu tempo, do teu tempo, o tempo perfeito e completo, é uma confidência receitada piedosamente aos que foram cilindrados pelo rolo do tempo que pavimenta os caminhos. Naquele meu tempo e teu também, o jardim estava engalanado de uma fonte que jorrava luzes monótonas e previsíveis de vez em quando, tinha patos residentes e os brasões do Império, não ilustravam as fotografias dos turistas porque não os havia e não os havendo, não se tiravam fotografias. Nós, os putos, cirandávamos por esses domínios, soltos e felizes, fazendo das “nossas”, como compete fazer aos catraios. Muito por engano, ou transvio nesse espaço amplo, lá aparecia um visitante transeunte com pronúncia e modos, mas dos “nossos”, e lá o entendíamos como lusitano. O bairro do Restelo e de Belém era nosso, assim como todos os bairros, arredores e perímetro continental. Os outros territórios, assinalados nos mapas pintalgados nas escolas, espalhados pelo mundo, seriam a e aceitávamos com