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A mostrar mensagens de 2023

MUNDOS PARALELOS

É muito fácil de entender. É como o bolo mil-folhas, são as dimensões paralelas. Universos em camadas. Uma dessas camadas, de massa folhada, é a do admirável mundo das folhas de Excel. Nada de outro mundo, porque há mundo assim. Na casa do grande Bingo, com a marca Bing Bang , à medida que saem as bolas numeradas, os seres são direccionados para uma dessas camadas de mil-folhas existencial. Os das folhas de Excel, que desconhecem a existência de outros mundos, vivem obcecados com a quimera de construir a folha de Excel perfeita. Irrefutável, irrepreensível, cheia de “macro”, fórmulas infalíveis, cálculos sem erro. Como o bolo mil-folhas constitui-se de camadas finas sobre camadas finas, entremeadas por cremes ou doce, assim os mundos, por vezes comunicam, se bem que muito esporadicamente, e os habitantes de cada um desses mundos não vê nem percebe o que está a acontecer, porque não acredita na possibilidade dos mundos paralelos. Assim que o efeito desse contacto é sempre nulo. Ni

O BACALHAU DÁ-NOS TUDO

Nos manuais, talvez já mais do que ultrapassados, do marketing e das vendas, quando se queria identificar um potencial cliente para um produto, havia algumas categorias onde se podia colocar esse possível cliente. Uma delas era a dos “Aderentes rápidos”, aqueles que com pouca conversa, aderem imediatamente ao que lhes é proposto (esse tipo de cliente, não se julgue que seja em reduzido número, pelo contrário, de todas as classificações, é a que mais “aderentes” tem). O meu pai, em quase tudo, era um aderente rápido, tão rápido que muitas vezes ainda não o tinham doutrinado levando até ao fim o relambório, e já ele, estava a levar para casa o que lhe quisessem impingir. No seu manual imaginário, de como um pai deve educar o filho, no capítulo dos suplementos alimentares de alto rendimento e sucesso inquestionado, tinha à frente de todos os outros e com distância, o Óleo de Fígado de Bacalhau. Era bom para tudo, um superalimento, não precisava de argumentos científicos, era um dos

O MEU DIA É O NOSSO DIA

Dizem que é o meu dia, o nosso dia. Devo aceitar. No entanto, não gosto de ser comemorado, nem ter um só dia que seja meu. Desejo-os todos, não para que sejam somente um bom dia de calendário, um simbolismo, mas para juntos, eu e todos, vivermos gloriosamente, intensamente, amando-nos, este espanto doce que é viver. E se querem saber, o meu dia, o meu grande dia pleno e cheio, foi quanto vocês germinaram, vivendo também para contar os dias, os vossos. Nesse momento irrepetível, compreendi a eternidade. Longe ou perto, colou-se a mim, a minha pele, a vossa companhia, a vossa cumplicidade, o nosso amor, e nunca mais passeei sozinho. Viva, pois, os dias infindáveis, o tempo ameno e a passagem pingante e compassada do tempo. A vocês!

FIGUEIRÓ DOS VINHOS E O FENÓMENO IRRESISTIVEL DO ENCANTAMENTO

 

A LIVRARIA E PAPELARIA ESPAÇO, lda. – em Algés

Teria os meus seis, sete anos de idade. Miudinho no entendimento da poeira das coisas complexas (talvez ainda permaneça nessa casa de partida), quando me fascinei por uma montra de uma loja, expondo livros, objectos que via pela primeira vez numa quantidade que não compreendi. Um quadro vivo, com dimensões e texturas, e muitas cores, umas intensas, outras esbatidas. Apaixonei-me, sé é permitido a um rapaz dessa idade apaixonar-se (deve ser, porque a paixão não é amiga da razão e um catraio de seis anos tem pouca razão). Pelos títulos dos livros. Nessa altura ainda não sabia que havia livros – alguns entre os melhores que já se escreveram – em que está tudo dito nos títulos que lhes dão, não merece o esforço desperdiçar momentos, com a dolorosa agonia das frases que se amontoam nas páginas, tantas vezes excessivas. Tempo perdido. No entanto e dando a sensação de que se procuram sempre compensações que restabeleçam a harmonia das coisas, há muitos livros que não deviam ter título,

A ZÍNIA

OS melhores croquetes da via láctea e arredores. Os rissóis de camarão igual. Eu não conhecia outros - nunca tive espírito científico -, pelo que estes ganhavam sempre, eram imbatíveis e deliciosos. No tempo em que se cozinhava em casa e os locais de venda de comida pronta a deixar-se comer ainda não sabiam que não tinham sido inventados, até mesmo os supermercados, que andavam na barrigas das suas mães, a Zínia era pioneira do pague menos e fique bem servido; leve a comida embalada e é só comer sem ter que se dar lume aos bicos de gás. Foi dos primeiros estabelecimentos a ter aquelas redomas de vidro com frangos espetados em fila, a andarem à volta como num carrossel de feira, neste caso para galinhas póstumas. Ganhavam uma cor rosada e não era pelo esforço de se afoguearem, mas ao fim de não sei quantas voltas que nunca as contei. Era por ordem de chegada de cliente, quando ainda não havia aquele sistema de senhas numeradas, uns mais espertos do que outros, ou com mais pressa d

PREFIRO NÃO FAZER

  Todos os dias, no minuto certo da hora certa, ele regista no relógio do ponto a sua entrada na repartição. A repartição de que se fala chama-se o Instituto das Boas Ideias, organismo que o governo criou, não que tivesse para eles sido uma boa ideia, mas porque, num recente discurso à nação, o primeiro-ministro, pressionado pelos jornalistas que não largam as presas - mesmo as inocentes - para se ver livre das críticas que sobre si recaiam, anunciou que convidaria todo o povo a enviar ideias boas (para uma entidade que o governo iria, para agilizar criar imediatamente), ajudando assim o governo a governar melhor e com maior cumplicidade dos seus eleitores. O senhor Aparício, que trabalhou desde catraio na função pública (entrou como moço de fretes, tinha ele os seus quinze anos), funcionário exemplar, transitou para este novo instituto, e estava orgulhoso disso. A sua função, fundamental, é de receber o correio das ideias e separá-las e colocá-las numa das três prateleiras na sua es

O SOUSA MARTINS

  A minha avó Maria das Neves foi uma mulher do seu tempo, supersticiosa e crente. Por via de dúvidas, assinou uma apólice que lhe cobria todos os riscos e danos, subscrevendo fenómenos animistas, espiritas e mágicos, ao lado de episódios de fé, produto acabado de uma igreja séria, com culto reconhecido e validado, deuses e santos com provas dadas e milagres devidamente reconhecidos por um colégio rigoroso e quase cientifico de clérigos com muita prática em reconhecer fenómenos milagrosos como episódios do divino, sendo por isso mesmo especialistas. A minha avó fazia promessas à estátua do Sousa Martins, no largo dos Mártires da Pátria, estátua essa que é o maior altar de Lisboa, em céu aberto, do culto do paranormal em versão português suave. Uma coisa é certa, se há tantos (vêm da província até) a colocarem à volta da estátua fotografias de entes queridos, pedidos em verso e em prosa escritos em tabuinhas, braços e pernas em parafina, cabeças em parafina, órgãos em parafina, alguma

O MOSTEIRO

  O nosso mosteiro é uma casa grande onde residimos os dois, em voto de desapego e contenção da palavra, a beleza ruidosa do silêncio. Eu sou o abade e o senhor Darwin é somente monge (fez votos há muito pouco tempo). Fazemos causa nossa cumprir com agrado essas regras monacais de simplicidade. Só nos Domingos e dias festivos, falamos um com o outro. Banalidades, para libertar espaço às palavras que se acumularam nas nossas cabeças durante a semana. Consomem-se nesses dias, alguns vernáculos, para limpar o palato da alma. Eu mais do que ele. Depois, em caindo de novo o palco da segunda-feira, voltamos aos nossos exercícios espirituais e afazeres místicos. Eu faço leituras em voz alta de Santa Teresa e a mística e o encontro de Deus, mas não sei se o Darwin percebe, ou estando com o focinho baixo e olhos semicerrados estará a rezar (rezamos em cântico gregoriano que é muito mais apropriado a uma comunidade intelectual como a nossa), ou mesmo a dormitar que o malandro às vezes deixa-se

O ÓSCAR, CÃO

  Já falei dele, mas nunca é de mais. Gostamos de nomes pouco comuns e não diferenciando espécies animais – daí o incomum, quem é da família é da família -, damo-nos por vezes nomes excêntricos.  Lembro-me do tio Tertuliano, da tia Florinda, da cadela Maria Balbina, do cão Ancónio  - que depois, por consideração à  minha mãe que só conhecendo o nome Paulo, ter em casa um cão com o nome desses só lhe iria complicar ainda mais a vida – , que se passou a chamar  Óscar, nome que o meu sobrinho mais novo veio a ganhar, e quando souber disto não sei se irá gostar. Do Óscar, o cão, fui parteiro e coveiro, o que me extravasou de alegria, e secou-me de tristeza. Dei-lhe vida e tirei-lhe vida, e nunca quis ser deus, foi o mais próximo que estive e não quero para mim esse desígnio. Assistir à sua alvorada e ao seu crepúsculo, foi forte, e se é para sofrer, antes humano do que deus. O fim da sua história abriu uma ferida que doeu a cicatrizar. Quando os meus pais, livres dos filhos, começaram

A QUIMICA DAS CORES

Se fosse lobo seria siberiano, do Ártico, grandioso, por ser lobo e pelo manto volumoso que o reveste. Seria, no porte e pela atitude, uma macho alfa, como poderia ser uma fêmea alfa, desconhece-se se no reino animal há preconceitos de género. Mas não era lobo, era um magnífico exemplar dos cães pastores-alemães. Inteligentes como os seus compatriotas humanos, quase todos, porque há sempre excepções.  Qualquer treinador de cães nesses idos anos oitenta do século passado, gostaria de ter algum no seu curriculum de ensinador de cães, e eu, que mal me ensinei a mim mesmo, mas que não deixo de tentar, senti o meu ego piscar faíscas de autoestima, por estar a ensinar um cão-pastor alemão a defender o património do seu dono, um bar em Portugalete , uma periferia operária da Bilbao de então. Eu bem tentei, e o curso que deveria ser de um mês já ia nos três. O animal era encantador e estabelecemos uma boa relação de amizade apesar de eu não saber falar basco, e ele também não porque era cã

CEROULAS

Cresci numa família que usava ceroulas, os homens. A sociedade dividia-se entre os que usavam e os que não usavam, fui parar sem escolher, ao primeiro grupo. E como está de se entender, eu também as usei. Confesso que achava ridículo (palavra que lá em casa não se empregava e tenho pena porque não desgosto dela),   quando de manhã via o meu avô ou o meu pai na casa de banho, em ceroulas, pareciam-me pinguins, a passarem com todos os cuidados a brilhantina pelos cabelos, revoltos nas voltas das noites, prazeres ou insónias, alinhados durante o dia em concordância com as normas das repartições públicas: o meu avô nos correios, o meu pai empregado de escritório. O que nunca perdoei nas ceroulas, o que me denunciou tantas e tantas vezes no recreio da escola primária, era aquela faixa mais ou menos branca, a sobressair aos olhos do mundo, por debaixo da bainha das calças e nem as meias pretas, cumpriam a tarefa de esconder a vergonha alheia, ou porque o cano dos tornozelos era já de si cu

OS LIVROS

    Nas contabilidades impossíveis por falta de acento nos livros do “Deve” e do “Haver”, não foram muitos os dias em que não tenha tido a companhia de um livro. Se saio de casa e por distração me esqueço de trazer um, se já estiver demasiado afastado para voltar atrás, não descanso enquanto não termino o que vou fazer e regresso incomodado. Nesse lapso de tempo não estou inteiro, falta-me algo de mim. Não vou todo para onde vou porque me esqueci de levar um livro. E quando tenho uma ausência mais prolongada, de dias por exemplo, escolho os que acho adequados para a viagem, mesmo que seja uma primeira visita, que não saiba o que vou encontrar e ver. Ainda assim tento imaginar um ou mais livros que se adequem à ideia artificial que construo do sítio para onde vou, naquelas expectativas que quase todos colocamos quando partimos ao encontro de um lugar novo. Sei bem o que é a solidão, estar um dia sem falar a não ser com a minha interioridade, mas não sei quanto tempo aguentaria viver

TAMBÉM SOU BASCO

  Fugi porque tinha uma ferida aberta, sangrando muito. Uma traição, provocada por uma paixão que foi um vendaval, que levantou telhas dos telhados, pedras de calçada, vasos com flores. Remoinhos incontrolados que me viraram do avesso e assim fiquei, até que nasceu uma pele nova, e pude continuar a viver. Dizem que um ama e o outro é amado. Talvez seja verdade, continuo sem saber, não acredito muito em vaticínios alheios, prefiro a experiência pessoal. Fugi, porque a cidade e os transeuntes para sempre anónimos e que nunca virei a conhecer, asfixiavam-me com o seu andar inconsequente pelas ruas, apoderavam-se distraídos do ar que eu precisava para respirar e gritar a minha dor. A cidade ficou pequena para nós os dois. E então, sai. Fui o mais longe que pude: mil quilómetros, nada mal. Cheguei nos finais do mês de Setembro, num dia de grandes e trágicas inundações, e não conhecia ninguém, não sabia o nome das ruas, não conhecia a língua, nem dizer a palavra inundações, e chegava n

MÚSCULOS

  Fui sempre um trinca-espinhas. Com pena própria, pois  gostaria de ter sido um Adónis, um Apolo, um Hércules, um Silvester Stalone (só o admirei no primeiro filme, era adolescente e não me apercebi que ele era um bronco, sou mais tarde), musculado, imponente e belo, fosse de que Olimpo fosse. Era isso que eu queria, mas a natureza não me fez assim. Em catraio, ingeri a contragosto, lembro-me disso com algum enjoo biliar, a farinha trinta e três, um « alimento saudável composto unicamente por ingredientes naturais: amido de milho, farinha de trigo, amido de mandioca, açúcar, cacau puro em pó, dextrose e vanilina. E um sabor a chocolate que continua a deliciar todas as gerações», seguindo a indicação da bula que nem sequer contesto, mas a minha mãe e a minha avó recomendavam vivamente (não havia alternativas). Quando conclui, a custo e à custa, que não saia vencedor -nos intervalos na escola primária -, das questões resolvidas a murro e pontapé (os grandes, só de os ver desistia l

QUEIJINHOS FRESCOS

 Não sei se já vos contei a história do epílogo épico (depois desse episódio não a vi mais), da minha tia Belarmina. Era uma mulher excêntrica, se bem naquele tempo não usássemos essas palavras para descrever personagens que por alguma razão tinham comportamentos despirolitados que levam à risada mas também a situações embaraçosas. Se a sua preocupação fundamental não fosse inventar estratagemas para pôr, todos os dias de preferência, comida no prato, poderia ter sido artista. Comediante talvez. Casou com um dos irmãos mais velhos, do meu lado materno, e o seu marido, um festivaleiro de gema, esgotou num pestanejar de olhos as suas fichas existenciais, em tertúlias até às tantas, casas de pasto e de fado, touradas e largadas na Moita e no Montijo, sendo que o mais longe onde se deslocava era a Vila Franca de Xira. Claro que tinha apontadas na sua agenda mental as festas populares e os arraiais dos bairros de Lisboa, sendo conhecido de todos , e sempre bem recebido. Era um bom homem.