Uma vida a ver passar. Dias a seguir a noites, pessoas, meios de locomoção, dinheiro pelas mãos, oportunidades, sonhos, ilusões, dissabores. A ver passar tanto e tão rapidamente, sempre a ver passar, a julgar-me idiota, em ocasiões, porque só via passar. A não agarrar nada, nem com a vontade nem com os mãos. E todos a acenarem e eu na incerteza de que estariam a meter-se comigo, eles também a passar e a passarem por eles.
Depois desse fluxo torrencial e fugidio,
aceitei ser tutor de duas galinhas poedeiras, e usufrutuário de um pequeno
terreno agrícola que tem no seu inventário três oliveiras, um limoeiro, uma
laranjeira e o que julgo poder chamar-se uma clementineira, mas não
arrisco certezas. E flores, abundantes e diversas, que até sermos devidamente
apresentados, não lhes sei o nome.
Hoje é o dia em que deixei de ver passar: consegui
ser admitido no Jardim das Delícias.
Passado então para o outro lado, vejo-vos
agora a passar, no portão de entrada do meu novo jardim. Aceno-vos eu, não com desdém
nem mofa, mas contente por vos ver apesar de que preferia deixassem de ver
passar e que se alegrassem.
Foram as galinhas que mexeram comigo.
Nunca me imaginei em comunhão familiar com
elas, no entanto, nas primeiras impressões, parecem-me seres encantadores e
relaxadamente abstraídos de responsabilidades. É que nem mesmo no voar, e têm asas
e penas, fazem esforço para fingirem que voam.
Um destes dias vou ter ovos gratuitos e
frescos. Se não é isto a felicidade!!!
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