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Mensagens

A mostrar mensagens de fevereiro, 2023

PREFIRO NÃO FAZER

  Todos os dias, no minuto certo da hora certa, ele regista no relógio do ponto a sua entrada na repartição. A repartição de que se fala chama-se o Instituto das Boas Ideias, organismo que o governo criou, não que tivesse para eles sido uma boa ideia, mas porque, num recente discurso à nação, o primeiro-ministro, pressionado pelos jornalistas que não largam as presas - mesmo as inocentes - para se ver livre das críticas que sobre si recaiam, anunciou que convidaria todo o povo a enviar ideias boas (para uma entidade que o governo iria, para agilizar criar imediatamente), ajudando assim o governo a governar melhor e com maior cumplicidade dos seus eleitores. O senhor Aparício, que trabalhou desde catraio na função pública (entrou como moço de fretes, tinha ele os seus quinze anos), funcionário exemplar, transitou para este novo instituto, e estava orgulhoso disso. A sua função, fundamental, é de receber o correio das ideias e separá-las e colocá-las numa das três prateleiras na sua es

O SOUSA MARTINS

  A minha avó Maria das Neves foi uma mulher do seu tempo, supersticiosa e crente. Por via de dúvidas, assinou uma apólice que lhe cobria todos os riscos e danos, subscrevendo fenómenos animistas, espiritas e mágicos, ao lado de episódios de fé, produto acabado de uma igreja séria, com culto reconhecido e validado, deuses e santos com provas dadas e milagres devidamente reconhecidos por um colégio rigoroso e quase cientifico de clérigos com muita prática em reconhecer fenómenos milagrosos como episódios do divino, sendo por isso mesmo especialistas. A minha avó fazia promessas à estátua do Sousa Martins, no largo dos Mártires da Pátria, estátua essa que é o maior altar de Lisboa, em céu aberto, do culto do paranormal em versão português suave. Uma coisa é certa, se há tantos (vêm da província até) a colocarem à volta da estátua fotografias de entes queridos, pedidos em verso e em prosa escritos em tabuinhas, braços e pernas em parafina, cabeças em parafina, órgãos em parafina, alguma

O MOSTEIRO

  O nosso mosteiro é uma casa grande onde residimos os dois, em voto de desapego e contenção da palavra, a beleza ruidosa do silêncio. Eu sou o abade e o senhor Darwin é somente monge (fez votos há muito pouco tempo). Fazemos causa nossa cumprir com agrado essas regras monacais de simplicidade. Só nos Domingos e dias festivos, falamos um com o outro. Banalidades, para libertar espaço às palavras que se acumularam nas nossas cabeças durante a semana. Consomem-se nesses dias, alguns vernáculos, para limpar o palato da alma. Eu mais do que ele. Depois, em caindo de novo o palco da segunda-feira, voltamos aos nossos exercícios espirituais e afazeres místicos. Eu faço leituras em voz alta de Santa Teresa e a mística e o encontro de Deus, mas não sei se o Darwin percebe, ou estando com o focinho baixo e olhos semicerrados estará a rezar (rezamos em cântico gregoriano que é muito mais apropriado a uma comunidade intelectual como a nossa), ou mesmo a dormitar que o malandro às vezes deixa-se

O ÓSCAR, CÃO

  Já falei dele, mas nunca é de mais. Gostamos de nomes pouco comuns e não diferenciando espécies animais – daí o incomum, quem é da família é da família -, damo-nos por vezes nomes excêntricos.  Lembro-me do tio Tertuliano, da tia Florinda, da cadela Maria Balbina, do cão Ancónio  - que depois, por consideração à  minha mãe que só conhecendo o nome Paulo, ter em casa um cão com o nome desses só lhe iria complicar ainda mais a vida – , que se passou a chamar  Óscar, nome que o meu sobrinho mais novo veio a ganhar, e quando souber disto não sei se irá gostar. Do Óscar, o cão, fui parteiro e coveiro, o que me extravasou de alegria, e secou-me de tristeza. Dei-lhe vida e tirei-lhe vida, e nunca quis ser deus, foi o mais próximo que estive e não quero para mim esse desígnio. Assistir à sua alvorada e ao seu crepúsculo, foi forte, e se é para sofrer, antes humano do que deus. O fim da sua história abriu uma ferida que doeu a cicatrizar. Quando os meus pais, livres dos filhos, começaram