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A mostrar mensagens de outubro, 2019

JUNTAR SONHOS

Naquela tarde, talvez por ser a tarde que estava marcada, percebi que não seria possível. Não recebi nenhum aviso de ninguém, o meu corpo não experimentou um estado físico diferente do habitual. Para além da sua rotina de corpo a funcionar sofrivelmente bem, não houve premonições, fenómenos de poltergeist. Nada. Estava como tenho estado nos dias anteriores a este, e espero que os próximos e os que mais tenham de ser, assistindo mansamente a um destes programas das tardes de televisão, dos que desfiam episódios menos risonhos da existência de todos os indivíduos. As coisas boas não passam na televisão, só misérias. Mas as pessoas gostam, é o que pedem, atestar os níveis de tristeza, com as experiências dos outros, cópias repetidas das suas.  Não abrem mão de ser um elo dessa grande corrente universal da condição humana. Fazem cadeias de amor por esses episódios baratos, rebuscados, quando não fazem nada pelas coisas que realmente importam, queixam-se, é só. Estou as

HORA DO ALMOÇO

Anunciou-se, espampanante. Encheu a casa de dar nas vistas, com um vestido caído a acompanhar as linhas do corpo, mas ao mesmo tempo largo, desimpedindo os movimentos, deixando-os à solta, uma linguagem corporal exuberante a sua. Rosa forte, a cor do vestido. Sentou-se na mesa que lhe indicaram. Estava irremediavelmente alterada com a sua entrada, a tranquilidade da sala. Antes pacata, sem história, clientes habituais a comerem pratos habituais baratos e por isso menos bons. Deixa-se para lá a qualidade dos pratos, agora, há uma tensão de olhares, de posturas corporais de atenção, os clientes na sua maioria, e os empregados todos, aguardam. O que aguardam eles? Que ela continue a representar, uma artificialidade, ou um essencial de si: encenando o seu verdadeiro. Pediu dois croquetes que são desenxabidos e colam-se aos dentes. Comeu-os com uma delicadeza no detalhe, de os agarrar educadamente, levar à boca com ponderação, trincar pedaço a pedaço como se fossem beijos ca

MARVÃO

Marvão está mais perto do céu, para o bem e para o mal. Para o bem, quando num dia despejado, sereno, ensimesmado de si, estende a vista sem esforço maior, até uma enorme longuidão. Agarra os contornos da mais imponente serra continental, maior, que temos: a Estrela; noutra direcção vai-se quase até ao mar, pelo menos a saber-se que ele está ali, prestes a chegar ao alcance da vista; noutra, os campos lhanos, meio monótonos, a tomarem nos meses de verão as cores de uma extensa mantilha doirada, como alguém disse do ilustre Branquinho da Fonseca, o homem das bibliotecas itinerantes da Gulbenkian: “ a paisagem era amarela e chata; o poeta deitou-se na paisagem e ficou amarelo e chato ”; outra direcção ainda, terras de Espanha, o estrangeiro que temos como nosso vizinho, os melhores que poderíamos ter, irmãos. Para o mal - que nunca fica esquecido-, em dias de tempo carrancudo, recebe a borrasca antes das terras baixas, águas por vezes diluvianas, primordiais, ventos sibilinos,

COMO É O AMOR?

É como pescar. Lançam-se as sortes, aprende-se paciência, entende-se a essência do acto de esperar, pratica-se a atenção sem compromisso, atinge-se o conhecimento: da cana de pesca, do carreto, da linha, do anzol, do ambiente água, do peixe que acabará por não resistir à tentação da gula pela voluptuosidade do isco oferecido, deixando-se pescar. No entanto, o acontecimento que marca o sucesso apoteótico do pescador, não é só esse desenlace final. Representa a soma de tudo isso, dos dias corridos de insucesso, da espera, da atenção, até que muda a sorte, como o vento, e volta-se para casa anafado de vaidade e orgulho, considerando-se o melhor pescador do universo. É verdade, agora que se diz, é como o vento. Caçar a vela num barco, apanhar a brisa no ângulo certo, que infle a primeira e se inicie o movimento de propulsão, aproveitando o sopro desta, fazendo cavalgar o barco as ondas, ou melhor ainda, voar rasando a espuma das mesmas. Tanta tentativa, tanta atenção, chega