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Mensagens

A mostrar mensagens de abril, 2023

A TOPIARIA

Nos jardins suspensos - imaginando-os suspensos - que rodeavam a torre de Babel, estes na Babilónia, mas seguramente que os houve em Babel, mas que também podiam ser numa cidade invisível de Calvino, ou noutras utopias, ajardinavam estes, rodeando-a em todo o seu perímetro, a torre alta o suficiente para alcançar o céu, e Deus, na sua moradia celestial, não gostou ser dessa forma incomodado pelos homens e como castigo ordenou que falassem muitas línguas, todas diferentes, uma algaraviada, para que se desentendessem, presumidos que podiam chegar às esferas superiores e falar com Ele sem marcação prévia e anunciada. Se ainda hoje, os homens andam na miragem de criarem uma língua única universal, desenganem-se, Deus continua atento e com ou sem arranha-céus a poluírem a sua morada, não o vai permitir. Fique certo que jamais os homens falarão uma só língua. Diz-se que disseram que esses jardins, belíssimos e únicos, foram construídos por botânicos e agrimensores regulados pela arte d

O MIÚDO E A BANDEIRA

      Corre apressado o miúdo com uma bandeira na mão. Vai compenetrado. Onde vai ele que vai tão sério? É o porta-bandeira. O catraio, ainda criança, vai decidido. É a sua bandeira, com as cores que mais gosta. Ele veste uma camisola vermelha com o nome de um país, escrito a dourado, nas costas e uma cruz ao peito. Apesar da urgência dos seus passos ainda curtos de criança, consegue-se perceber no que se vê do seu rosto ainda imaculado, quase escondido pelos longos caracóis do seu cabelo, oiro, reflexos brilhantes com o soprar da brisa leve que se faz sentir neste dia de calor, que ele sorri. Vai, portanto, alegre e apressado, porque leva consigo, bem segura na sua mão frágil e apoiada no ombro, uma bandeira que é muito importante. É a sua, e se vai assim, atravessando o que parece ser uma rua com uma parede amarela, é porque tem um propósito, talvez seja uma missão, que alguém lhe deu, ou porque veio da sua cabecita de pequeno futuro homem, tão pequeno ainda e tão adulto nessa sua

Abril ou a impossibilidade da utopia

Falta só um ano, tão pouco, tanto, para este país anacrónico e tão incompreensível, completar cinquenta anos de um sonho de democracia. Um ano como se fosse mais cinquenta, e sempre tão longe, pelo que se conseguiu e erodiu, pelo que não se conseguiu e nem se tentou, pelo que se desbaratou e deitou ao lixo com estrondo, pelo que se aproveitou para benefício próprio e desconsideração ofensiva aos outros, porque fracos, ou porque são honestos, ou porque andam sonolentos e distantes. No dia 31 de Março de 1974, um mês antes de um herói, cavaleiro-andante, selar definitivamente o quartel do Carmo numa manhã nublada de Abril, o ditador em funções do regime, foi insanamente aplaudido por 80.000 crentes ou tontos, situacionistas eram (estive presente e vi, era adolescente ainda, não sabia ainda se era tonto ou crente, ou desalinhado), num clássico de futebol na metrópole do Império, com narrativas branqueadas nos compêndios da História oficial. Tudo “a Bem da Nação”, o seu povo submisso e o s

O NOSSO LUGAR

A Biscaia é um golfo, nome de um mar com personalidade, que banha a Galiza, as Astúrias e o País Basco. Mar de histórias, de lendas, de canções, de lágrimas pelos seus náufragos, sendo assim um mar como todos os outros, que geram as mesmas emoções. No cimo de um penhasco íntimo e meu, olhei muitas vezes esse mar e deixei-me levar por sonhos. Não me imaginei marinheiro, apesar de ser romântico e gostar do Corto Maltese. Imaginei-me alguém a olhar o mar e sentir no rosto descoberto os salpicos salgados de uma certa melancolia minha. Esta saudade que nos mantém cativos e doridos. Cárcere a céu aberto. O mar tem esse efeito em nós, levar-nos com ele, sem necessidade de justificações nem rumo definido. Numa terra que conheço ainda melhor, não longe de Lisboa, existe uma pequena localidade que se chama Biscaia. Não sei se em honra desse mar a Norte. Fica no cimo de um penhasco, meia dúzia de casas, um pequeno pinhal, e o manto habitual da flora autóctone meio selvagem que lhe dá ainda en

AS PALAVRAS BELAS

  Não penso nunca na morte e fico contente porque o céu é azul. Consigo viver perfeitamente vadio porque fechei a clepsidra do tempo, no sótão de onde vivo. Esqueci-me dela e ando por aí, a juntar pequenos prazeres, para um dia, quando voltar a contar o tempo, poder ter a quantidade suficiente para ser feliz e cheio, antes mesmo de ter de pensar na morte. Até lá, pinto a manta, volteio, faço rimas que umas rimam e outras não, falo com as pessoas, e leio livros, uns melhores do que outros, alguns, sublimes. Não deixo nunca é de me admirar e nesses espantos que me caem no beiral dos olhos, e os chamo para dentro de casa, convenço-me de que poderei ainda vir a escrever o grande caderno das palavras belas, umas, que eu cá sei, mais minhas, porque são as minhas palavras belas. Cada uma tem a sua identidade, tem um passado seu e um carácter próprio. Umas são mais sociáveis, outras mais ariscas. Contarei a sua história como eu as vejo e conheço e espero, que a partir daí comecem a ser olhadas

UMA NOITE DE FADOS

O meu pai nunca foi a Figueiró dos Vinhos, muito menos a aldeia Ana de Aviz, nem eu tinha ido. No fim do seu caminho, passava longas tardes, numa pequena sala, com auscultadores nos ouvidos. Ouvia fado. Não incomodava ninguém, nem a minha mãe, e por isso, por não a incomodar, ela amuava considerando que era uma desconsideração, estarem os dois em casa e cada na sua existência, herméticos um para o outro, como se a vida das pessoas não fosse assim, cada um balançando-se no seu ritmo. Eu não compreendia nesse tempo o fado, mas compreendia o amor, talvez já um pouco demente, que ele tinha por uma canção, entranhada na alma e nos corpos das gentes de Lisboa, motivo das paixões mais violentas, e de desfechos trágicos, nos bairros mais pobres e decadentes. Era uma música que eu considerava melancolicamente triste, que me incomodava, sem saber explicar. Ainda não tinha chegado o meu tempo de gostar de fado. Hoje, ele já não frequenta essa sala, que de resto já nem existe, desfez-se nas po

A CHARANGA DOS CAVALOS BRANCOS

Apesar do alcatrão e de ser atravessado por viadutos, era e é um descampado grande, antes com ervas ao acaso, hoje ordenado, a mesma sensação pessoal de abandono, de frieza. O largo de Algés. Nesses tempos as ribeiras comprometiam-se com o mar e transbordavam nas épocas de chuvas intensas, transformando o largo num lago com objectos flutuantes. Ainda hoje é assim. Desse largo partiam algumas carreiras de autocarros que ligavam Algés a Lisboa, eram verdes. Os revisores picavam os bilhetes de cartão com cores a identificar as zonas, com um alicate, peça fascinante e à excepção de furar, completamente inútil. No campo do largo grande, ervas daninhas prosperavam, já foi dito. No calor intenso de alguns verões e levantando-se ventos, eclodiam pequenos incêndios, inofensivos porque não havia nada senão erva, mais ou menos rasteira para arder. Os miúdos do prédio amarelo, pousávamos os queixos de querubins, no bordo do muro que continha o pátio do prédio, onde vivíamos de manhã até à noit

O RESTELO DAS CASAS BRANCAS

Há ainda a dizer, que era um pequeno bairro de casas brancas, quase iguais, com pequenos jardins, alguns só com uma árvore, de fruto, e os miúdos do bairro, encenando heróis ou perdedores, “assaltando” os quintais alheios para colher uma peça que fosse, demonstrar a sua bravura e sinais de coragem, ganhando pontos na hierarquia do grupo. Bem precisariam dela, mais tarde, quando embarcaram para a guerra, defenderem o indefensável. Arbustos desenham os muros, não é tempo de jardins exuberantes e relvas caras, muitos menos piscinas, carentes de espaço e de utilidade sociológica. Algés apresenta-se do outro lado de uma avenida ampla que imita o rio que desagua à sua frente, quase a dar o último suspiro na linha da praia, onde ao longe se adivinha, com esforço na visão, um minúsculo farol, flutuando. Saindo dessa foz, por um cordão umbilical, que não se consegue cortar -filhos e pais e filhos, enrolados nele, sem desembaraços à vista, que permita liberdade de movimentos e um respirar

O SABOR DE UM BOLO HUMILDE

    A minha mãe era pastelinhos de nata, galões clarinhos e um palmo e meio. Sempre para mais e nunca para menos. Espalmado, como uma língua. A minha mãe também foi sogra, mas não fez uma relação directa nem de concordância com esse bolo humilde, de padaria, com o seu significado popular, de “linguaruda”, “falar do que deve e não deve, “dar palpites e meter-se na vida conjugal dos filhos”, como por exemplo diminuir as noras e os genros, porque os nossos meninos são imaculados e virginais. A “língua da sogra”, bolo, nunca teve grandes pretensões, pouco doce, com sabor realçado da canela que lhe dá a identidade, mais para o denso do que para o fofo, vendido nas padarias de bairro, já mal se encontra. Em tempos passados de eu ter sido criança, era uma recompensa de bom comportamento, e não havendo outras comparações a não ser com o bolo-rei mas esse era só uma vez por ano nas festas do Natal, a língua da sogra foi o meu bolo preferido, e mantive-me nessa ilusão até vir a conhecer e es