Avançar para o conteúdo principal

FALAR SOBRE A MARIA.

 FALAR SOBRE A MARIA.

As vidas não são exemplos de vida, mas algumas podiam ser. Apesar das valorizações pessoais e subjectivas do bem e do mal, há pessoas, talvez sem se darem conta disso, até porque não se estimam particularmente, ou se acham minúsculos (que todos somos) e absolutamente anónimos, deixam na sua passagem por este plano de existência, um rasto de luz e esperança.

E nem sempre, ou quase nunca, são os “grandes” deste mundo, que deixam uma pegada com as mãos lavadas e nítidas.

Há vidas mais sofridas outras menos, há de tudo, de muita a pouca felicidade, sucesso, preenchimento e o que se queira.

O mundo entre outras coisas, não devia estar dividido com baias, devia sem amplo e desafogado de muros e redes e todos termos o direito de pertencer a todo o lado, independentemente da língua que falamos e dos atavios que temos em cima de nós, incluindo as tonalidades da nossa pele, mas tudo isso são romantismos e sonhos ingénuos.

O “pedaço” onde residimos, que amanhã pode ser noutro lugar, não é  nosso nem do outro, é somente o sítio onde moramos temporariamente e amanhã poderemos vir a ter de mudar. A “nossa gente”, é toda a gente que conhecemos, com quem nos damos e identificamos, com a que sentimos ligações de comunidade.

Há mais do que uma bandeira bonita e belamente colorida, e as canções a que chamamos hinos, que nos fazem chorar de alegria e orgulho e pertença, são várias e diversas. As auroras e os crepúsculos, são imponentes e extasiantes, em inúmeras geografias, assim como as cores do céu, as brisas perfumadas, a sensação calorosa de que o tempo está suspenso, naqueles raros, mas prazenteiros momentos em que sentimos uma ligação directa e completa com o universo.

Nunca fui à Moldavia, mas deve ser um país lindo, como são todos, apesar das fronteiras que tantas vezes os cercam.

Conheço uma mulher que se chama Maria, que veio desse local, mulher feita, que emigrou há trinta anos.  Desconhecia a nossa cartografia, como eram as pessoas, se a língua era fácil ou difícil, se teria oportunidades, acolhimento, adaptação.

Não conheço ninguém que emigre pelo prazer de recomeçar a vida no absoluto desconhecido, a não ser os nómadas diletantes, que não sabem o que querem, são meninos mimados e imaturos, imbuídos de um punhado de estereótipos onde misturam turismo massificado, aventuras embrulhadas em papel celofane, facilitismos pseudo-empresariais e actividade profissional a que se não conhece o interesse e utilidade.

Emigrar é um salto no abismo muito escuro, na roleta que pode calhar a qualquer um.

Esta Maria veio começar de novo, não importa como, com que esforço, abdicando até da sua dignidade, aceitando o trabalho que os outros não querem.

Uma lutadora. Trabalhou dias e noites, deu futuro aos filhos, aguentou a lenta degeneração do marido, corroído pelo álcool, a desistência, a apatia. Até comprou um apartamento, que pagará até morrer, enganada pela voracidade dos bancos que não olham a humanismos.

Foi rebaixada, aviltada por pessoas retrógradas e ignorantes, segregada por racismos amorais e sem sentido.

E depois de tudo, depois de uma luta imparável - que mulher esta -, adoeceu. Neste país já não se pode adoecer, mas ainda assim lá vai sendo tratada como se pode.

A força que lhe resta, na cabeça, é a mesma de sempre. A força que lhe sobra, no corpo, vai-lhe escapando à frente dos olhos.

Maria, mesmo assim não quer sair deste país, que ama como seu, e é. O calor dos dias de sol, a iridescência luminosa do céu despejado, a segurança, a bonomia das pessoas em geral, não têm preço.

Maria tenta e tenta uma reforma, pequena quando o conseguir será, e é tudo tão complicado. Os papéis, infindáveis rolos de papiros com preenchimentos incompreensíveis. As idas, constantes, infrutíferas, a balcões disto e daquilo, onde a atendem pessoas amargas, que não olham com os olhos, que menosprezam quem está do outro lado do balcão, porque talvez elas também se sintam desprezadas pela inutilidade das suas vidas vazias e pobres. E as coisas não andam, as incapacidades (cada vez maiores) nunca são as suficientes para o carimbo de liberdade que os burocratas têm nas mãos e usam como pequeno poder orgiástico.

A reforma não vem, e ela já não consegue trabalhar como trabalhava, e como se pode viver com uma “Baixa” de 175€ mensais?

Por esta descrição, percebe-se que Maria não tem uma vida fácil e o prognóstico futuro não é de vir a melhorar.

A vida de Maria não é exemplo. Maria é que é o exemplo. De uma mulher tantas vezes tratada como gentinha – qualificativo baixo - com uma nobreza que muitas elites não têm, nem aqueles idiotas acéfalos – cada vez mais -, que acenam às cenouras populistas de frases feitas ocas, prometendo glórias pátrias, novos impérios quando já não há nada para conquistar e temos uma dimensão quase ridícula, supremacias de raça quando não há raças, direitos só para uns e escravidão e sevícias para outros.

Tenho o privilégio de conhecer Maria, e digo-lhe, mesmo  não entendendo todas as palavras que juntei neste texto para falar dela, que a sua dimensão, ultrapassa as suas dificuldades, nesta vida tantas vezes madrasta e amoral.

Maria merece de mim, a proporcionalidade de admiração que desmerecem todos os exemplos opostos, e por isso, quis apresentar Maria, que muito provavelmente nunca virá a conhecer este texto. 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

AI DO QUE GOSTEI E DO QUE GOSTO

  Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó.   Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.   Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não.   Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava

BERLINDES

Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi

COPOS E GAJAS BOAS, DE PREFERÊNCIA

De manhã se começa o dia, dizia a minha querida avó, mulher avisada, que vestia de preto, tinha um buço pronunciado e gostava da pinga às escondidas. Como quem sai aos seus, aos seus sai, já enfiei dois medronhos, para dar energia a enfrentar o dia que dá trabalho, e até chegar ao fim, é uma peregrinação quase religiosa ao botequim do chico. Pelo menos tenho fé em ir lá, é uma espécie de purificação do meu interior. Agora só bebo sininhos, estou em dieta alcoólica, só pequenas quantidades (de cada vez claro). Não se pode dizer que saia caro. Cada sininho são 30 cêntimos. Um copo de três, cinquenta cêntimos. Apesar de alguém desavisado poder estar em desacordo (está longe, não vê, está mal informado), sou uma pessoa poupada: só bebo um de cada vez. Se descontar de todos os que bebo, as ofertas, os brindes às efemérides de cada parceiro que frequenta o botequim, e os que o Chico se esquece de cobrar, gasto realmente muito pouco. Sou portanto no Sul, um dos homens mai

CAVALO-MARINHO

  Na distância do tempo que leva a vida a passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar certezas. Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido, mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança, abrindo gavetas e mexendo em prateleiras. Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia, pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,  depois a querer saber o que havia por trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova óbvia que a minha tia ficou

DO AMOR INCONDICIONAL - 1-DO PODER

Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado. Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções. Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica. Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva por vezes a equilíbrios no fio da navalha. O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha,