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A mostrar mensagens de julho, 2021

O HOMEM QUE SE DISTRAI A SONHAR O RIO

  Está sentado na forma simples que os hindus têm de se sentar. Na India tudo é yoga, até a miséria absoluta e o fedor da morte ao virar dos cantos. O homem olha para o rio, calmo, meio-adormecido parece, nas horas quase paradas do meio da tarde. O calor é intenso e seco, outro homem não o aguentaria. Está habituado. Descansa do trabalho sem fim, uma escravatura dir-se-ia, mas não, é uma libertação. A Ilha onde este homem está sentado à beira do rio que se chama Brhamaputra e é um dos grandes rios da Índia onde tudo é muito, extenso e grande, está a desaparecer. Os homens demasiados homens que vivem nela, esgotaram os seus recursos. É sempre assim, depois queixam-se mas voltam sempre a pecar. Este é diferente. Não tinha com que entreter a miséria em que vivia e pobre por pobre em vez de ficar sentado a estender a mão a nada, escolheu plantar árvores. Na sua Ilha de Majuli. Começou essa mendigagem em 1979 e já plantou 341 hectares, de uma floresta tão bonita que voltou a receber ele

A GRANDE MURALHA DE ÁCACIAS

  Podendo a vista ser desimpedida, fazem muros para a tapar, aprisionar os seus horizontes a uma parede, a delimitar um território, tenha a extensão que tiver. Constroem-se muitos muros, cada vez mais altos. De betão, de ferros, de pedras sobrepostas. Estando a vista aprisionada, macambuzia, definha, desiste. Quem faz os muros finge que não sabe, mas não os faz para se defender do que fica fora deles, fá-lo para se defender de si próprio. Se pudesse ver-se, quando se olha ao espelho, cairia em si, de vergonha e perceberia de uma vez por todas que os muros são desnecessários e infelizes. Todavia, nem todos os muros são inúteis. Homens com esperança, milhares deles, puseram-se a construir um muro feito de árvores. São acácias, árvores fortes, de crescimento rápido, que aguentam as inclemências do tempo e de poucas águas. Esse muro, quando estiver terminado, e falta pouco, terá mais de sete mil quilómetros de comprimento. Imagine-se, um muro assim, o maior de todos alguma ve

IMAGINE

  Imagine que por uma decisão do acaso todos os homens sorriem. Imagine que o fazem livres na sua vontade. A quantidade de sorrisos simultâneos, ao mesmo tempo por todo o mundo, teria um grande impacto. Imagine também que sorrindo todos dão as mãos. Imagine que isso acontecia num dia de sol e céu limpo. Imagine que dessa forma, põem de lado as suas sensações privadas e pessoais e que sorrindo e de mãos dadas, Aproveitando o descaramento do sol e debaixo de um céu vaidoso e sem preconceitos, Compreendem o significado do grande segredo. A consciência do “EU”. Talvez nunca venha a acontecer. Nem todos os homens gostam de sorrir, muitos nunca darão as mãos. Pode ser que eu seja um sonhador, mas não sou o único. Pode ser que um dia você se junte a nós, E entendamos os mistérios, afinal tão simples, da identidade.

O TANGO DA MORTE

  Fazia um frio intraduzível. As pequenas acções celulares rotineiras que trazem a vida do mais pequeno microscópico à complexidade de um ser completo, estavam praticamente paralisadas. O desconforto prolongado provoca lentidão na vida. Atrasa todas as funções. Resumimo-nos a isso, esperar.   O dia é cinzento como foram os de ontem. Não há futuro, pelo que não se pensa na cor que define os dias que não vão existir. Talvez para os que estejam participantes, mas neste mundo, agora, nenhum de nós chegará a esse momento. Os outros mundos que existem lá fora, esquecemos, já não sabemos como são. Estamos inertes parados no descampado. Uma forma de tortura, conhecemos todas. Um muro simbólico e letal de arame farpado electrificado limita o nosso pequeno universo. Para nós, a Via Láctea ficou um passo atrás do portão de via única: só se entra. Não conhecemos dos nossos quem tenha saído. Não se ouve nenhum ruído vivo a não ser o som cortante faca de gume afiado, da dor que pinga dentro de

UM RELATO DE COMO ACABOU O MUNDO

  Parece que foi assim que começou o dia final. Foi um dia longo. Para acabar com a Terra um só dia é pouco, o tempo esticou. O poder bélico construído e acumulado pelos homens foi suficiente para acabar com o mundo. A manhã começou cedo, por alguma razão talvez tenha intuído o que ia acontecer, fez-se dia com pressa. Na ambivalência difusa e opaca da alvorada, os bombardeiros, máquinas de guerra, estavam prontos. De vários pontos do globo mantidos em segredo, levantaram voo. Nas primeiras horas as tripulações mantiveram-se em silêncio, oprimidas pelo ruido agressivo do potentes motores dos aviões. Não houve comunicações com as bases, para não serem detectados. Todas as instruções foram transmitidas oralmente em salas insonorizadas com o exterior para não haver fugas de informação. Algumas dessas aeronaves cruzaram-se no céu, sobre a lhanura dos oceanos ou no recorte da orografia dos terrenos. O sol, forte, refulgiu nas carcaças metálicas dos aviões. Num primeiro momento encadeou tod

POEMA DA LIBERDADE

  Send o livres podemos inventar palavras e o mundo avança. Se não as inventamos pomo-nos à espera, como os pescadores e elas acabam por morder o isco. Sendo livres podemos correr como nos motivar a vontade, duma ponta à outra do mundo, ou se bem nos apetecer aos círculos e ziguezagues. Até mesmo nem sair de casa. Há quem tenha sido feliz dando voltas à sua cama, num quarto que até nem seria muito grande. Sendo livres não voamos como os pássaros mas entendemos como eles voam, o mesmo se pode dizer sobre os peixes e todas as espécies animais. Compreendemos as coisas. Sendo livres contamos o tempo à nossa maneira e se nos perguntarem as horas, e se insistirem, inventamos as horas que nos apetecer. Ninguém se zanga porque somos ingénuos e puros. Sendo livres os dias são dias e as noites são noites, e antes também eram assim, mas não eram nossos. Sendo livres até nos apetece cumprimentar e sorrir mais vezes e quando choramos é igual, não precisamos conter nada, é um cumpr

O IMPERADOR DO ESPÍRITO SANTO

  O Imperador olhou para o império com olhos humildes. Havia gratidão na forma como ele olhava. Não é habitual um imperador olhar assim o mundo, mas ele é um homem anónimo, vestido da importância de um cargo, que está acima dos homens e ao lado dos deuses. Amanhã deixará de o ser, entrega esse fardo a outro. Alvorece, o dia desponta e ele contempla o seu vasto território. Não lhe conhece os limites e as fronteiras, nunca viajou. O epicentro do seu império é marcado pelo penhasco onde agora se encontra a contemplar. Um sítio num lugar. A razão por estar ali, tão cedo, deve-se ao seu forte sentido do dever. Homem de natureza séria. Está ali antes de começar as suas infindáveis tarefas diárias, é o seu momento de introspecção. Vem para se encontrar consigo mesmo, para fazer balanços, limpar a consciência de coisas turvas. Lança para a caixa dos desejos a esperança de estar à altura, de poder cumprir com orgulho o dever de que foi empossado. Com isto benze-se e cerra os olhos por momen

SEREIAS

  Não somos conhecedores de tudo o que se passa debaixo de água, ainda menos quando nos dedicamos às tarefas do dia-a-dia, que salvo sejamos escafandristas, as executamos à superfície. Por isso podemos palpitar sobre a vida nas profundezas, no desconhecido, nada mais. Há quem sonhe frequentemente, quem é dado a sonhar frequentemente, com sereias e outros seres extraordinários, habitantes como os peixes e outros dos mares, mas lá está, também não sabemos se existem. Dizem-se em histórias e no passar de boca em boca, quando a isso calham, que em noites de lua cheia estes seres de uma feminilidade incontornável, encantam e hipnotizam os belos efebos que se aproximam das águas, por estes serem sensíveis e poéticos ou porque estando tristes, a companhia das ondas sincopadas, embala os sonhos e afasta-os das angústias da vida. É nesses momentos, em que baixam a guarda, que são sequestrados por elas, que os arrastam para as profundezas incógnitas, não se vindo a saber o que acontece depois. N