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AMOR INCONDICIONAL É UMA DOR DILACERANTE E TRISTE

  

Nessa circunstância ausente de compreensão, sem qualificação apropriada, nessa desumanidade que é ainda mais ausente – se pode ser – da chama de simpatia do coração humano, algo que brota em jorros incontroláveis, umas trevas, algo com uma dimensão que só pode ser de outro mundo, diabólico, que não é possível entender, destaca-se um instantâneo de alguns escassos segundos, pouco mais do que uma imagem, com pouco movimento.

Uma imagem, que passa diante dos nossos olhos, focados num ecrã, olhos frios, secos, que não lacrimejam, habituados a imagens violentas frequentes.

É no chão de uma sala de hospital. As lajes desse chão  seriam brancas, não estivessem manchadas a vermelho.

O olhar é, entre outras manifestações mais ou menos subtis e pessoais de amor incondicional de uma mãe ao seu filho, a cumplicidade mais forte. É no olhar mesmo que esquivo, de ambos, que se descodifica o código do amor. Não há outro olhar como esse.

Nesse cenário infelizmente real, uma mulher ainda jovem, nos momentos da decisão última, fora da sua vontade, sobre o seu futuro, jaz, vestida de sangue sujo e igualmente morto, o mesmo sangue que pinta o chão.

A sua filha, quatro anos talvez, está sentada, impaciente, mas ainda assim contida, ao lado da mãe e olha para ela.

Pode parecer que olha para a mãe com um olhar adulto, protector, invertendo os papéis dessa cena de um teatro da vida real. Não tem idade para isso. Como ela olha para a mãe é pedindo protecção, um contacto físico.

Colo, a sublimação do abraço.

A sua mãe, nessa situação encruzilhada, na roleta de viver e de morrer, vendo, já mal vendo nitidamente a sua pequena filha, num embaraço convulsivo do seu corpo, estende o braço, tremente, pouco preciso, e consegue puxar para junto de si a criança. Pousa a sua cabeça no peito asfixiado de ar, e deixa o braço pousado num esgar de abraço, “a minha menina.”

No caos sem justificação desse momento retratado, nesse lugar de um mundo bárbaro,  esse acto final de amor retratado involuntariamente pelo repórter, torna-se insustentável para o observador acomodado no seu cadeirão.

Essa imagem é tudo o que basta ver, não podia ser mais forte.

Que mundo é este, que o aceitamos assim, fazendo-o assim?

 

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