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Era a poliomielite


José andava paraliticamente coxo. Doença antiga, de criança. E tinha os dentes encavalitados. Os que recebem as pessoas com sorrisos. Por isso sorria pouco e falava com a boca entreaberta para quem observa, e meio-fechada, na sua avaliação e vista sob a sua perspectiva.

José era o único menino do prédio que não ia para o pátio das traseiras brincar com os outros meninos. Talvez por ter esse andar bamboleante, ou por não poder emitir uma opinião sem que um oceano de perdigotos se soltasse rebelde, da sua boca que não tinha a culpa.

Um azar nunca vem só. A ele tocaram-lhe pelo menos dois, o que não foi justo, mas enfim os homens não se devem meter nas coisas dos deuses nem emitir opiniões sobre assuntos e decisões celestiais.

Foi uma pena que nunca tivesse brincado connosco. Fizemo-nos homens e uma barreira a separar-nos, nunca ganhámos intimidade. Passava os dias empoleirado no beiral da sua marquise que dava para o pátio, a ver-nos brincar. Como não podíamos usufruir da sua companhia, delimitávamos a baliza, quando jogávamos futebol, no enquadramento da sua marquise. Uma forma simpática da nossa parte, integrando-o no grupo e levando placidamente com as bolas na cara, quando o guarda-redes de serviço, era nabo e frangueiro.

Não se queixava porque ele queria participar e o melhor que se podia arranjar era ele levar com as bolas na cara, ficava todo contente. Já a mãe, com um bigode profuso e um laçarote que pareciam duas orelhas enormes de coelho doméstico, a dar o nó no lenço, era o diabo com o filho e o marido (que mal falava e não era por ter problemas com perdigotos). Sempre a tentar imiscuir-se na qualidade (neste caso defeituoso) dos nossos pontapés, pouco certeiros, mas sabe-se lá porquê, bem direcionados para o filho que dava ares de boneco de feira popular.

Quando crescemos e deixámos de frequentar o pátio que se tornou desinteressante até à geração seguinte, o José trocou de beiral. Passou-se para o lado oposto da casa, o beiral de uma das janelas que davam para a rua principal.

Como já não levava com bolas na cara e, entretanto, tinha-se feito adulto, fumava exuberantemente cigarros provavelmente baratos (com aquele ritmo frenético de consumo tinham de ser forçosamente baratos para não sobrecarregarem o orçamento), e observava da manhã à noite e muitas vezes fazia horas extraordinárias, todos os movimento dignos e indignos de nota da nossa rua.

Poderia ter sido um excelente espião, mas também nessa profissão é preciso estar no momento certo, no lugar certo, e ele nunca saia da janela.

Ele dava nota portanto, do passar do eléctrico esganiçado, muito de tempos a tempos,  chiando as rodas de ferro nos carris de ferro, como se estivesse a fazer uma corrida consigo próprio, e de uma mão cheia de transeuntes, na sua maioria e generalidade, rostos conhecidos e do bairro: o merceeiro Xico, homem bom e que fingia que se deixava enganar nas contas e nos rebuçados; os seus marçanos, acabados de chegar das terrinhas e ávidos de apalparem as sopeiras aquando da entrega dos cabazes encomendados; o leiteiro, António qualquer coisa, homem azedo e se ser assim era dos leites que ingeria, melhor seria que fosse do tinto, podia ser que acalmasse; e os homens de família nas suas partidas e chegadas a casa, já que na sua maioria de contagem, as mulheres ainda viviam naquele tempo fechadas nos casulos, na dificílima e mal recompensada tarefa de educar os filhos, fazerem ou organizarem a lida do lar, ter as contas certas do mês, e estarem sempre sorridentes com os seus maridinhos, chegassem eles cedo ou tarde, enublados ou escorreitos.

Quando os pais do José faleceram, um a seguir ao outro, ficou a questão resolvida, é o que se diz lá no bairro, e o José sem perder mais tempo que já tinha sido muito a olhar vacuamente para o nada, gastou as poupanças recebidas, com as meninas de vida fácil.

Foi visto nos bares do Cais do Sodré, a fumar profusamente, executando volutas de fumo com figuras de animais, talvez porque conseguiu com tanto treino a maestria de aqueles dentes servirem para alguma coisa: darem contornos artísticos às fumadas expelidas.

Dizem também alguns, que enquanto o José era apreciado e até aplaudido por estes exercícios que fazia sentado nos balcões dos bares, não havia noite que não fosse visto com uma dessas meninas sentada a seu colo, apesar da incompatibilidade paralítica referida no início desta crónica.

Gastou o dinheiro todo, que não era muito, e as meninas têm muitas sedes, e foi para um lar, “barriga cheia”, como popularmente se diz.

Espero que tenha, se ainda for vivo, um resto de vida tranquilo e sonhador. Ele era um grande guarda-redes, não falhava uma bola.

 

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