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O PROFESSOR


Como um aventar discreto, que mal se apercebe, que vai e volta, um sopro ínfimo que ainda assim refresca, neste caso, as recordações que se apresentam trazidas de uns confins, interior nosso, por esse vento quase não vento que é o nosso pensamento.

Por vezes são partes incompletas, que pedem paciência e um labor de filigrana, para revelarem essa pequena história do passado. Outras, são tão vivas e completas, como se fossem de ontem, revelando nesses fotogramas que afloram ao nosso pensamento, episódios de pessoas que já não estão cá num volume a três dimensões, que habitam agora permanentemente a nossa casa interior. Extinto o corpo, a sua substância colou-se a nós, forra-nos.

Os que chamamos de nossos, são os de sangue e todos aqueles que adoptamos com a grande naturalidade de serem escolhas evidentes.

Aprendi a ler e a escrever com uma caligrafia bem desenhada e contida no espaço das linhas paralelas que pautavam as folhas da escola primária. Nas palavras, fui polido e cumpridor da norma. Nas ideias nem por isso. Deixei e deixo escapar muitas, fogosas, anárquicas, inquietas de liberdade própria e autonomia. Escapam-me, deixo de ser senhor delas, nem responsável pelos estragos que possam provocar.

Não foi ele que me ensinou a disciplina das palavras, nem me guiou o pensamento. Mas foi ele que me indicou os caminhos das primeiras leituras, o vicio que mantenho de andar com pelo menos um livro para todo o lado, e se me esqueço de sair à rua com um, mesmo que só vá comprar batatas e cenouras, fico  desassossegado e incompleto.

Foi esse homem que revejo um rosto bondoso e calmo, ponderado em tudo e muito bom conversador, debruçado no beiral da janela da sua casa, no rés-do-chão de uma rua conhecida de Algés, trocando connosco, em bicos de pés e a mal chegar com os olhos à linha desse beiral, ouvindo conselhos e opiniões sobre os segredos da filatelia, gosto que nos motivava a aderir, ou então a falar sobre movimentações das peças de xadrez, jogo que tinha um prazer contagiante.

Foi o meu Professor da Quarta classe na escola primária do Restelo, homem de que esqueci o nome, o que pouco importa, guardo na minha memória esses fiapos episódicos de uma pessoa que moldou (com outros) o que eu sou e que me acompanha sempre que preciso dele e o chamo, acendendo-se de imediato na minha memória a sua figura, no panteão dos meus heróis.

Acho que ele gostava das minhas redacções, e é por isso que nunca mais as deixei de escrever, na expectativa – ainda hoje - de receber da sua parte um louvor que me deixa vaidoso.

O meu professor.

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