Nos domingos, nas aldeias destes interiores, o silêncio ouve-se ainda mais que nos outros dias da semana, intervalado pelo canto dos pássaros, ao despique, sendo na primavera, e sem contrapontos quando o outono vai preparado o mundo para a grande noite do inverno.
É quando os velhos, que é um nome muito mais respeitável que idosos, vão
ao Convívio na bela aldeia de Ana de Aviz.
As senhoras, ainda com vaidades, arranjam-se para sair. Os homens, mais
arredados dessas coisas da compostura, vão como estão, como andam todos os dias.
A boina, ou boné, é que não podem faltar e no jeito de os pôr na cabeça, ora
enterradas, ora simplesmente deixadas cair, pala para o lado ou inclinada, são
essas as suas vaidades, que dizem muito sobre quem a usa.
O Convívio tem no rés-do-chão, uma biblioteca com livros de temas
variados, até enciclopédias. Como não é frequentada, os livros provavelmente
deprimidos por não receberem ninguém para os folhear, desleixaram-se, descompuseram-se,
descaindo das prateleiras, uns em cima de mesas, abertos, sabe-se lá quando foi
a última vez que alguém lhes pôs os olhos em cima.
Sabe-se que as vezes são visitados por umas pombas, animais curiosos que
se metem em todos os sítios, só para verem. Mas como estas não sabem ler, os
livros pouco ganham com as suas intrusões.
O bar do Convívio fica na cave. Temos assim o peso do conhecimento, nos
livros que pavimentam o piso superior, sobre as cabeças dos homens, e sobre
este assunto com “pano para mangas”, como se diz, podiam-se fazer grandes
dissertações, que não vêm ao caso, pelo que não faremos.
O bar propriamente dito tem mesas, cadeiras e um balcão para a pouca
serventia dessas tardes. E lareira, pois então. Como não pode faltar, um ecrã
televisivo, como se fosse a moldura de um quadro ao vivo pendurado na parede,
debita as mesmas imagens de todos os domingos: mulheres jovens e menos,
arrebitando seios desesperados para saltarem fora dos corpetes, nádegas
bamboleantes a saltitarem como bolas de ténis, histéricas, enquanto artistas de
gosto duvidoso fingem que cantam canções picantes e banais, ao som dos mesmos
acordes. Mude-se de canal, que a história é a mesma. Só os apresentadores são
diferentes, sendo, no entanto, os mesmos, de sempre.
A televisão está lá porque deve estar, faz parte da mobília, os aldeãos
não vão ao convívio para verem televisão, vão para conviverem.
Não é que não se vejam todos os dias, várias vezes ao dia. A aldeia não
é grande, tem poucos habitantes. Mas, no Convívio tudo é diferente. É como se
fosse a festa oficial de todas as semanas, o ponto de encontro, o lugar íntimo
dessa pequeníssima comunidade.
Quem não vai, ou está doente, ou tem familiares em casa, e fica perdoado
até ao domingo seguinte. Se falta dois domingos seguidos, a coisa começa a ficar
preocupante, o que alimenta o fogo dos “suponhamos”, das conversas
fiadas, das imaginações que constroem histórias e dramas e tragédias, e sabe-se
lá mais o quê.
As senhoras tricotam conversas tagarelando. Falam dos filhos, que estão
foram, que já conseguiram algo de seu, mas matam-se de saudades; falam dos
netinhos, alguns na universidade, vão ser doutores; confessam maleitas e
sofrimentos, e as formas de as remediar, seguindo em frente com a vida, que é
assim que se deita a doença para trás das costas.
Os homens falam alto, uma questão de masculinidade. Contam chistes
brejeiros uns aos outros, falam de coisas suas, dos campos e isso, gozam uns
com os outros sabendo que estão todos velhos, mas enquanto houver genica vão
continuar a atirar com todo o estalido a bela da manilha que vai arrumar o jogo
da sueca e uma vez mais, fazê-los heróis da tarde. Alguns só não saem em
ombros, porque já não é tempo de se carregarem uns aos outros. Isso foi nos
tempos da juventude, quando a energia era inesgotável e a fragilidade era uma
ideia que não existia nas suas cabeças.
Por ali deixam desenrolar com todo o vagar a tarde, que na própria
lentidão desse silêncio dominical, não apresenta vontade de terminar: é até que
o sol se ponha a caminho.
Se as senhoras bebem chazinho e fazem elas muito bem, bebericando e
molhando os bolinhos para se comerem melhor, os homens, revezam-se nas rodadas
da cerveja, ou vinho. Revezam-se mas sem
exageros, que os tempos da folia estão lá para trás na memória do próprio
tempo.
E são assim, simples, despidos, felizes, sorridentes, amigáveis, os
domingos que se passam no Convívio da aldeia de Ana de Aviz, e noutras aldeias
de outros nomes, mas com os mesmos personagens moldados de mulheres e homens de
carne e osso, e os ingredientes que compõem esses cenários.
«O Manel tem a mania que é campeão, mas no próximo domingo,
não me chame eu como me chamo, vai aziar-se com uma surra nas cartas, que vai
ficar de boca a banda, o convencido.»
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