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NÓS NA CABEÇA

 


Esta história de falarmos do meu tempo, do teu tempo, o tempo perfeito e completo, é uma confidência receitada piedosamente aos que foram cilindrados pelo rolo do tempo que pavimenta os caminhos.

Naquele meu tempo e teu também, o jardim estava engalanado de uma fonte que jorrava luzes monótonas e previsíveis de vez em quando, tinha patos residentes e os brasões do Império, não ilustravam as fotografias dos turistas porque não os havia e não os havendo, não se tiravam fotografias.

Nós, os putos, cirandávamos por esses domínios, soltos e felizes, fazendo das “nossas”, como compete fazer aos catraios. Muito por engano, ou transvio nesse espaço amplo, lá aparecia um visitante transeunte com pronúncia e modos, mas dos “nossos”, e lá o entendíamos como lusitano.

O bairro do Restelo e de Belém era nosso, assim como todos os bairros, arredores e perímetro continental. Os outros territórios, assinalados nos mapas pintalgados nas escolas, espalhados pelo mundo, seriam a e aceitávamos como igualmente nossos, mas devido a distância destes para Belém, não podíamos tomar posse deles, instalando-se a dúvida de que eles fossem verdadeiramente familiares.

Quando nos cansávamos dos brasões, podíamos entrar e sair, as vezes que fizessem falta, na catedral dos Jerónimos, saudar os poetas Camões e Pessoa ali estendidos, cheios de correntes de ar, fazer o sinal da cruz, com a ordem certa ou não, todos cristãos, sem direito a outras opções interessantes e estimulantes.

Pintei espaços em tardes sem conta, fazendo o papel sério de monge jerónimo, dando voltas para um lado e o seu contrário, aos claustros do mosteiro, sequestrado pelo silêncio (imagine-se) e a frescura dessa via-sacra em tons suaves, só passarinhos e eu.

Depois, era o Planetário, uma viagem de espanto e encantamento, projecções do universo, sentados em poltronas com o olhar colado à cúpula, na expectativa dos episódios seguintes.

E depois, o museu dos coches, memorabilia que nunca apreciei. E os Pastéis de Belém. Era um café-labirinto com salas numa quase escuridão, com clientes locais e poucos, servidos por empregados – agora colaboradores – sonolentos e desanimados com o que o futuro lhes ofereceu, quando lhes apresentou à nascença, as expectativas para cada um.

Voltas dadas e agora, este tempo que é menos o meu tempo, nem todo o meu tempo, somente uma fatia, cada vez mais minguada, até deixar mesmo de ter tempo, Belém transformou-se numa feira popular de diversões.

O Jardim do Império, perdeu o Império e os brasões; os patos permanentes mudaram de residência fixa; Camões e Pessoa, fartos das correntes de ar, deixaram de ter descanso; os claustros acumulam filas intermináveis para verem o nada, o planetário continua a funcionar, agora em modelo tridimensional e virtual;  o museu da Marinha que ainda não tinha referido tem exactamente os mesmos modelos miniatura e modelos em tamanho real de barcos que tinha há trinta anos atrás; na “bicha” que se forma na rua para degustar os  pastéis, esgadanham-se as gentes em vernáculos de muitas línguas, para se passarem uns à frente dos outros, como se os pastéis fossem acabar.

Desencantei-me nesta revisita a Belém, deixou de ser minha, já não posso fazer macaquices rabeando em corridas das escondidas, atrás dos arbustos que davam sombra aos brasões, e não me sai da cabeça de que no meu tempo é que era. O incómodo que isto causa é que já não me lembro de quando foi o meu tempo. Terá sido um dia destes, mas eu gostava dos brasões, não por serem meus, mas por serem bonitos e todos diferentes.

 

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