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Ceia de Natal


A Dona Adelaide tinha um Perú. Não era sempre o mesmo, mudava todos os anos, por alturas do Natal, mas nós não sabíamos. Agora que se pensa nisso, onde é que nos restantes dias, ela meteria o perú, , que não se dava por ele no pátio do prédio onde representávamos o papel de crianças - eramos muitos - e brincávamos, aproveitando todo o tempo da infância, que no futuro nunca mais seriamos vistos com bons olhos se brincássemos, na monotonia formal da idade dos adultos.

A Dona Adelaide teria seguramente o seu perú numa das divisões da casa, como se fosse um animal doméstico, que estamos certos de que  seria. Há quem tenha papagaios, periquitos, lagartos, ela tinha um perú. Chegámos várias vezes, quando nos lembrávamos, de colar as orelhas à porta de casa de Dona Adelaide, a ver se captávamos sinais de vida do dito.

Só na altura do Natal é que o animal dava contas de que estava vivo, saia à rua, quer dizer ao pátio e por aí andava uns dias, bastante descontraído, até que a Dona Adelaide o enfrascava com aguardante e o animal, ou por não ter bons vinhos de alambique, ou por ter um fígado delicado, ficava desalmadamente trôpego, embatia em tudo quanto era obstáculo e lançava a cabeça e o pescoço comprido num movimento pendular, que só de se ver, causava tonturas. Até metia dó.

Nesses momentos de verdadeira loucura, tínhamos medo, não íamos para o pátio, ficávamos com os narizes pousados nos beirais das janelas, observando as movimentações erráticas do pobre animal.

Ao final do dia, instalava-se um grande alvoroço, a Dona Adelaide de saia a arrepanhar-lhe as pernas, a tentar correr atrás do perú, este bêbado, mas não totalmente imbecil, a fugir-lhe como podia, até que finalmente a mulher levava a melhor levando igualmente o bicho para casa. À força, que ele não queria.

Depois desta actuação, repetida todos os anos, ele desaparecia de cena, até o ano seguinte, nos mesmos preparos.

Às nossas insistentes perguntas de miúdos curiosos e ingénuos, a Dona Adelaidade respondia que o perú era o convidado especial da ceia de Natal, e não percebíamos o que isso tinha a ver com o facto de ela o ter embriagado, ele não se equilibrar coisa com coisa, e o facto misteriosíssimo, de num momento para o outro o deixarmos de ver, até o ano seguinte.

Ela insistia que era o convidado especial e não saia deste registo, e nós, por exaustão e porque as crianças se cansam cedo e estão sempre a mudar de assunto ou de actividade, desistíamos e voltávamos à nossa algazarra no pátio, até que o dia terminasse e fossemos chamados para as nossas casas, de roupa descomposta, cabelos anárquicos e alguns de joelhos arranhados, querendo lá saber disso e do estranho perú da vizinha que deixara de dar parte de fraco e se tinha ausentado para sempre.

Só muito mais tarde viemos a saber o que ela queria dizer com o «é o convidado especial da ceia de Natal», e percebemos finalmente, que o perú não era o mesmo, todos os anos era outro. Se se pode dizer, pelo menos morriam felizes, inebriados pelos vapores e bailarinos em transe até ao último momento

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