O meu pai desfolhou a vida a equilibrar-se nos patins, sem saber andar de patins. Não o critico, porque eu desfolho a minha equilibrando-me sei lá em quê, sem saber se me equilibro o suficientemente bem para andar sem quedas aparatosas.
O meu pai gostava de chamar
atenções sobre si e muitas vezes arriscava números complicados.
Era um provocador, e como em todas
as artes circenses e outras, mesmo as dos gestores de fundos, umas vezes
acerta-se, outras, menos. A firma onde trabalhava – era assim que se chamavam as empresas nesse tempo – tinha
uma fábrica de lâmpadas, na zona oriental de Lisboa, e fabricava os melhores
televisores do mercado.
O mercado sul-americano e especialmente
o brasileiro, tinha um grande potencial
de consumo de televisores, e devido à proximidade de termos uma língua mais ou
menos parecida, os executivos holandeses da firma, consideraram Portugal como a
plataforma de exportação de televisores para a América latina.
Alugaram um Jumbo da Boeing e o
meu pai, por trabalhar no departamento de import-export, foi encarregado na
missão de fazer o voo inaugural, como embaixador digamos, a inaugurar uma nova
era de muitos lucros para a empresa, e muito prazer para os consumidores de
imagens por esses lados do mundo.
Adorou as caipirinhas e as
baianas.
O voo fez escala em Cabo Verde. O
meu pai nos dias que esteve no Brasil comprou pedras fósseis – tenho agora uma
bela colecção delas perfiladas numa estante na sala - , ainda hoje não sabemos
porquê, e uma quantidade enorme de castanha de caju: estava na moda para
acompanhar o uísque com gelo e ele deve ter considerado que já que não
voltaria ao Brasil num voo inaugural, aproveitando a oportunidade para trazer a
maior quantidade possível de castanhas de caju, para o que desse e viesse em
termos de no futuro continuar a beber uísque com aperitivos exóticos.
Ofereceu também a todos os tios e amigos mais próximos.
E como reabasteceram em Cabo verde
e porque o único marisco a que tínhamos chegado, muito esporadicamente e
praticamente só para os adultos e em ocasiões muito especiais, foram os
camarões, o meu pai trouxe, acondicionadas em geladeiras, umas dezenas largas
de lagostas vivas, que eram muito baratas, mas ele não se lembrou de lembrar
com o as iria manter vivas em casa, já que não dispúnhamos de aquários e
comê-las todas de uma só vez era totalmente impraticável já que eram muitas.
Comemos as que pudemos e demos aos
vizinhos que devem ter pensado que nos tinha saído o Totobola. Ficámos tão
saciados de lagostas (não há fome que não dê em fartura), que voltamos com
prazer redobrado aos camarões, em épocas festivais e pontuais.
A partir daí o meu pai tomou o
gosto pelas viagens e reformando-se precocemente começou a andar freneticamente
de um lado para o outro, viajando para todos os destinos mais ou menos inusuais,
numa época em que a histeria turística ainda estava latente e poucos se
lembravam de irem ali e já vinham. Ele foi a Marrocos profundo, ao Nepal, à
Nicarágua (quem é que se lembra ir de férias a Nicarágua, um país onde não se
pode pôr um pé na rua e não correr o risco de ficar manco para sempre desse pé
e mesmo de todo o restante corpo?)
O meu pai foi e gostou de todos os
locais onde esteve, principalmente os hotéis e as festas que se organizavam
após os jantares, que finalizavam dias de intensas trasladações em autocarros –
uns melhores, outros nem por isso - prestando visitas a monumentos e pontos de
interesse histórico ou outros, um corrupio de nomes que ele nunca memorizou,
porque também não valia a pena, ele não voltaria mais a esses sítios.
Passados anos e álbuns
intermináveis de fotografias incongruentes, que ilustravam o seu périplo pelo
mundo, envelheceu vestindo camisas exóticas, chapéus estranhos e sandálias
inapropriadas, o que ele trazia das suas viagens, sendo motivo de curiosidade
etnográfica, nos restaurantes e
esplanadas que frequentava diariamente.
Idoso e já gaguejando
intermitentemente tremente no sofá da sala, assistia aos jogos de futebol que
tanto apreciava, envolvido num majestoso robe de seda tailandesa, profusamente
preenchido com flores coloridas e latejantes, e assim se esvaneceu no seu
estilo de prima dona caseira, estrela piscante num palco sem espectadores
montado num terceiro andar esquerdo de um prédio banal, num bairro de uma
cidade como outra qualquer.
Sem espectadores não, tinha a
minha mãe, que o amava tanto que nem deu conta, ou fingiu que não, quando no
sofá ao lado ele suspirou afincadamente o último , e olhou para o lado como se
não fosse nada com ela, deixando-se entretida com as notícias estimulantes da
revista “Nova Gente”.
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