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A mostrar mensagens de novembro, 2017

O MIRADOURO E O MONÓCULO

Perde-se o ar de tanto, uma asfixia, a respiração suspensa, no excesso de oxigénio, o que parece contraditório.  No cimo da serra o que está a acontecer é  espanto, deslumbramento, uma paisagem inimitável, agreste. Como é a natureza, e como as pessoas ainda se admiram, todos os dias, com as suas novidades e   truques de mágicas inesgotáveis, a embeiçar os homens.  A serra é circunspecta, senhoril, não cede a amizades fáceis. É profundamente bela, e isso é o que faz perder o folego e perdoar um aparente mau feitio. Estar ali, em estado admirador, com uma visão panorâmica a varrer toda aquela lonjura, e o que se imagina de mais lonjura, tapada pelos recortes das serras e da linhas das terras, a abraçar quilómetros: um privilégio. Se deus não se tivesse reformado seria uma bênção, assim é laicamente uma alegria. Não é um equívoco: a paisagem é bela, mas não é o que se pode estar a imaginar da descrição feita. Não há cor, não há árvores, não há arbustos, flore

O VOO

Escrever é como percorrer pacientemente - ou não - um espectro como as ondas da radio, procurando uma sintonia. É uma tarefa quase sempre absurda, cansativa, mal sucedida, quando parece ser tão fácil juntar umas quantas palavras bem intencionadas, a fazer sentido. Mas não é isso que se procura, fazer sentido. Vai-se atrás de mais, que não se sabe. Algo que seja suficiente mesmo que só suficiente, à justa, para preencher temporariamente todos os poros e espaços em branco. Depois, quando esporadicamente sai e flui, é-se oferecido de um espasmo inqualificável de prazer, que vai muito para além de um simples excelente momento de prazer. É outro algo, etéreo, mas físico; volátil, mas que envolve. Sente-se a pressão desse enlaço. Enfim, escrever não é nada fácil, mas é uma coisa não coisa que alguns poucos fazem tão bem; que alguns desejam suspirando tanto; que é fútil mas que tem uma utilidade: eleva a condição humana. A partir do momento em que esse h

UM CASAL, UMA MULHER E UM HOMEM, AMA-SE.

Está praticamente vazio de viventes, o jardim onde uma mulher lê livros na hora de almoço. Também frequentado  por outras pessoas com objectivos de vida legítimos - independentemente de não lerem livros a essa hora - e animais domésticos descomprometidos com a vida e os objectivos, sejam eles os que forem. Quase, porque vão aparecendo pássaros, que descem das árvores e vêm debicar o chão. Também cães, referenciados na zona, a cumprirem o passeio higiénico, guiados quase todos por raparigas jovens apetitosas - que era escusado e perigoso dizê-lo – filhas dos donos dos animais, obrigadas em chantagens de semanadas e saídas noturnas, a passear os bichos a hora certa, antes de irem para as faculdades ocupar o tempo, uma eternidade enfadonha, o tempo que se perde nestes sítios. Antes que se passe ao parágrafo seguinte diga-se que os pássaros, não cuidam de ser verão ou o que seja: debicam sempre que podem em todas as condições atmosféricas. Elas, as filhas dos donos dos

UMA SECA

Antes pelo contrário, não fazia frio. As pessoas queixam-se com contenção de queixume porque lhes dá jeito, mas todos falam nisso. E termina-se a conversa com um sorriso dúbio a dar entender todas as possibilidades, e assim não se comprometem com responsabilidades. É melhor do que criar conflitos. Este aglomerado de pessoas, que foi raça em tempos passados e agora é só um aglomerado, têm este tipo de natureza: são informes: está tudo bem e mal, ao mesmo tempo. Dar-se o sol a esta obscenidade e a temperatura ser de calores desta amplitude, no mês de novembro, é um contratempo ao qual as pessoas são alheias. Não têm nada a ver com o assunto, não fizeram nada (desculpam-se elas consigo próprias), concordam que não está bem, mas andam felizes por não chover. E se a água vier a faltar a culpa é dos espanhóis, que são um povo estuporado, que atazana desde tempos imemoriais a vida dos do lado de cá. José António mesmo com os contratemos climáticos, optou por tomar uma decisão f

MOEDINHA?

O truque é a abstracção. Não é pensar abstracto, é abstrair-se, escapar para longe ficando no mesmo sítio. É quase uma coisa de iogui avançado. Iliana fazia-o desde pequena, aprendeu com a mãe, que já vinha da avó e daí para trás. Iliana é muito viajada, apesar de ainda ser jovem. Conhece a Europa de uma ponta a outra, de Norte a Sul. A boa Europa claro, a rica. Nomeie-se uma praça, um monumento, uma rua comercial, ela conhece-as todas. Não de nome, mas já lá esteve, e esteve constantemente estando, não é como os turistas que estão de fugida. Não, ela é uma viajante de permanências prolongadas. Deve o seu cosmopolitismo a esse poder de abstracção. Quase um dom. Sem essa capacidade, como seria possível aguentar estar um dia inteiro, sentada no passeio com um copo de plástico na mão, a mendigar para esse copo quase sempre vazio, em frente a um belo restaurante com um belo terraço com janelas panorâmicas, de vidro, corridas do chão ao tecto com um sistema basculan

O SENHOR M

Andamos às voltas com o relato, o mais fidedigno que se pode e em esforço, do senhor M, um homem que é conforme da maior das considerações e que merece ser relatado apropriadamente. Por nada de especial mas porque todos os senhores e senhoras correndo o alfabeto dos nomes, merecem a homenagem de estarem vivos ou de já terem estado nessa situação, e uma homenagem é um acontecimento bonito porque a história do viver não é fácil de contar nem ela mesma de se  viver ao vivo. Assim, já sabem que o senhor M gosta de apanhar sol e fumar cachimbo. De ler, igualmente. O que ainda não sabem, mas espera-se vir a contar, é que ele já foi um homem muitíssimo enxuto, e chegou mesmo a embevecer duas ou três (foram três) bailarinas de tango. Não por ter sido um grande dançador, mas porque os trejeitos de volta que ele punha na dança, deixava-as desconcertadas, na dúvida de se seria realmente um grande bailarino desalinhado, ou um homem com outros potenciais. Era isso, teve na sua mão pe

MANUAL DOS SOLITÁRIOS

I -  Anda Farrusco, vamos acordar as ovelhas . O cão, enorme, abentesma naquela quase escuridão,  do tamanho de um homem bem medido, nem se mexeu. Ou antes, entreabriu o olho direito, o que estava mais próximo do dono e olhou-o desinteressantemente. Voltou à posição de estátua marmórea. A modorra das cinzas ainda quentes, espalhadas na lareira, a parecerem larvas incandescentes de um vulcão apagado – que faz as funções de fogão – meio mortiças, aqueciam sofrívelmente o casebre construído de pedra granítica daqueles lugares. Ficar por ali o mais que pudesse, era intenção do animal. Todos os dias pensava nisto, e nunca se realizava essa ambição. Um cão pastor não tem domingos nem folgas. Uma enxerga, que com muito boa vontade poderá imaginar-se cama, uma mesa bamba, um par de cadeiras, um escano junto ao lugar do fogo e um pouco mais de nadas, são os adereços de cena. Não há candeeiros, só lâmpadas cheias, envoltas de pó, às camadas, tantas que fazem de