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A mostrar mensagens de junho, 2015

O OLHO DA TIA FLORINDA

A minha tia tinha um olho de vidro e à noite afogava-o, maneira de dizer,num copo de água em cima do psiché . A água não era gaseificada, mas constituíam-se pequeníssimas e inúmeras bolhas à sua volta. A modos que um olho numa   flute   de champanhe. Para quem está habituado a dentaduras a boiar, esta foi uma grande ideia da minha tia. Sendo uma mulher com o sentido prático da vida, e como não se está a ver ninguém dormir com um fechado e outro aberto,    não tendo outros inquilinos, arrendou o aquário ao vítreo. Foi o meu avô que lhe ofereceu o olho, mais para ganhar as graças da sogra e ficar oficializado o namoro com a minha avó, sua irmã, do que por atenções à zarolha. Foi no entanto um gesto de simpatia. Um dia já sem memória que a bicheza das campas    as comeram ao mesmo tempo que as carnes, chegou a casa delas com um embrulho de papel pardo na mão e disse alheadamente:  « toma, a vê se encaixa». A minha tia desembrulhou-o na expectativa das tes

AS FESTAS DE LISBOA

                     Ilustração Paulo Robalo Esta cidade tem um santo a meias. Melhor metade que nenhum - é meio abençoada - o que não está nada mal dada a carência de protecções divinas. Os  académicos e canónicos disputam a naturalidade do santo, afogando-se em investigações e escrita de teses, gastam uma vida isto. “Nasceu aqui”, ”É mais dali do que daqui”, “Não é italiano”, ”Ai isso é que é!”, o que transforma a questão num grande enjoo e tédio. Não sabem eles que os santos não reivindicam certidões de nascimento, e estão no mundo para serem do mundo, distanciados de clubismos geográficos. O nosso meio santo - reza a lenda acabada de inventar - gostava da folia e não resistia a um belo bailarico, apesar da sotaina dificultar a soltura de movimentos. Era igualmente dado aos prazeres da comida e do refrigério, tinha portanto uma barriga generosamente saliente, sinal de bonomia. Como a Regra o impedia – e ele era dos mais cumpridores – de se ligar em matrimónios, fe

ANIVERSÁRIO

Tenho a noção do momento em que deixei de ser imortal, e disfarcei como se não fosse comigo. Olhei para o lado e não dei importância a esse contratempo: orgulho é inconsciência. Tratei do assunto com se fosse uma indisposição temporária, e segui a minha vida, mas as ressacas nunca mais foram as mesmas. Desde aí tenho vindo a aguentar os insucessos físicos, alguns inconseguimentos que não nos deixam confortáveis, falhas de memória também, e faço como se não fosse comigo. Assobio para o lado, persistente na teimosia do inevitável, ou se calhar agindo como um idiota chapado. Inevitável é uma palavra definitiva, sem contraditório. Irritam-me palavras assim! Faz algum sentido existirem palavras que não permitem uma conversa civilizada? A apresentação dos argumentos, a possibilidade de um acordo, no meio caminho do que ambas as partes queriam no início das negociações? Vais começar e já está colocado – no ponto de partida – o ponto do final? O meu corpo deixou de ser belo se é qu