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Mensagens

A mostrar mensagens de 2018

VERSÃO LIBERAL DE HAIKU - 1

Ambiciono continuar a ter a luz habitual do outono e repudio a impudicícia de uma luz a imitar a luz do verão  imiscuindo-se no meu quotidiano de dezembro. É a última vez que lhe faço este aviso.

A PATANISCA

Foi um olhar de desinteresse, talvez com uma ponta de soberba, senti dessa forma, estaria equivocado. Eu, que já vinha com receio, dei-me por vencido sem contestação. Não era para mim. Ela não podia estar a olhar para mim. Desconhecíamo-nos e eu não tinha nenhuma motivação em a saudar sequer. Iniciar uma relação, alimentar uma comunicação continuada, inventar um código de entendimento para essa comunicação, coisas do âmbito relacional.  Não, eu não queria isso. Dela eu não queria nada, a não ser distância. Incomodava-me a sua presença, ela deve tê-lo percebido. Deu-me espaço, mas cada vez menos espaço. Inteligente, felina, caçadora paciente.Foi estreitando a distância muito a pouco e pouco, num propósito de passar desapercebida, até eu vir a dar por mim sem pontos de fuga. No momento em que me sequestrou definitivamente, é que dei conta de que afinal somos  indissociáveis. tinha sido irremediavelmente seduzido. Nesse ponto da relação já tínhamos estabelecid

PATAGÓNIA

Celeste cumpriu o guião para a sua vida, sem contratempos. Navegou mares tranquilos. Não teve picos de ambição. Arriscou muito pouco e viveu longamente, desprendidamente. Viveu tanto tempo que chegou a esquecer de estar viva. Vegetou na etapa derradeira, não como um vegetal, mas como alguém que espera o nada, a passar o tempo numa espera inútil, a que a biologia obriga. Celeste foi redundante porque não tinha espírito missionário, tinha em si um temperamento de outra índole, deixar-se simplesmente viver, sem glórias nem medalhas.  Acompanhou-se do banal, deu-se bem, não precisou de outros amigos.  Acontece que o banal é uma característica do estado das coisas, não é uma pessoa. Assim, rodeada de uma característica mas faltando a companhia de outro corpo, mais não seja para ocupar sítio, Celeste, viveu uma solidão disfarçada. Talvez para não dar parte de fraca, talvez porque tinha orgulho, talvez por nada em especial senão não querer   anunciar ao mundo que era uma m

DESCUIDADOS DE DEUS- PONTO FINAL

A VIDA SEGUE Não lhe restando alternativa, a vida não se deteve no presente, continuou o seu imparável movimento para o futuro. Tudo acalmou, ao ponto de já ninguém se lembrar que Deus tinha um dia sido julgado num tribunal popular. Deixou de ser notícia, deixou de se a falar de uma coisa que não é fundamental.  Aparte pequenos e esparsos núcleos fechados, os homens foram perdendo a fé. Descomprimiram nas suas obrigações com o divino, ganharam tempo para cuidar de si e dos seus, frutificando uma nova espiritualidade, com raízes na terra, sem necessidade de se revirar os olhos ao céu com perguntas sem resposta, a forçarem a vista, esperando o quê? De ver o quê? e depois voltarem para dentro de casa, desiludidos, trazendo para a sua intimidade mais desconfortos vazios. O céu é bonito e pode-se fazer uma poesia, assim como o mar, uma árvore antiga, um mineral que não seja diamante mas reflicta como um caleidoscópio a luz do sol incidida em si. É nestas coisas que se enc

MANUAL DOS SOLITÁRIOS - CONTO DE NATAL

Enlameado até a décima quinta casa, se não for mais, o pastor e dono do cão farrusco, por lá continua serrania acima, serrania abaixo, pastoreando o seu rebanho de cabras e ovelhas. O farrusco, cada vez mais velho - a vida de cão-pastor obriga a muitas exigências do corpo - no seu papel de cão,  segue fielmente o dono, apesar de guardar cada vez menos seja que propriedade móvel (o rebanho e o patão), seja que imóvel (a casa na aldeia) forem. Deseja que o deixem em paz, um despegamento generalizado nos cães velhos. Ainda assim continua com aquela mania que não lhe sai da cabeça, sendo um mastim, que é um excelente cão de caça. Também já não vale a pena chamá-lo à razão. António o carteiro, aquele que tem uma Famel quase tão velha quanto ele, continua a distribuir cartas, agora raríssimas, desconsiderando-se para a contagem, as dos bancos e as das contas para pagar. António continua a gostar bastante de aguardente, e como em cada paragem nas raras casas ainda habitadas por

O HOMEM E O MAR - VELAS COM UMA CRUZ NO PEITO

** Ainda ontem homens em tudo iguais a Tertuliano, na natureza de serem homens, mas diferentes, por preencherem no seu espaço que se diz ser espírito, o espaço de indivíduos únicos, pensavam coisas talvez idênticas, encostados nas amuradas dos barcos onde navegavam. Barcos primitivos, sem instrumentos de orientação, só os humanos: atenção, observação, intuição, decisão. E quando (a) mar quer, quando se lhe carregam cenhos, ou porque o dia não correu bem, ou por assuntos domésticos, manifesta veementemente o seu carácter num rompante. Nem os homens nem nenhum barco feito por eles ficam a salvo da ira. Nada podem contra as forças obscuras, desconhecidas e por vezes brutais da sua natureza. Depois, quando aveluda, desculpa-se-lhe o mau feitio, apesar de naufrágios inúmeros e catástrofes irreparáveis. Após qualquer tormenta, baixa o manto da ausência de som, arrepia-se a pele numa sensação de plenitude e paz para quem, numa amurada, distrai o olhar sobre essa extensão ago

O HOMEM E O MAR - PENSAMENTOS SÉRIOS

III Não se imaginando o que possa ser, por doença ou acidente, a crueldade de uma cegueira e uma insensibilidade táctil aos elementos da natureza, como se poderia coerentemente explicar o mar, a uma pessoa nestas condições dificeis?   É uma explicação que não se explica. Dizer-se que é explicação, já é um exagero, é mais um convencimento para se andar com a vida para a frente sem remordimentos; uma justificação para si mesmo, rebuscada é certo, tipo: tinha de dar-te uma palavrinha…tínhamos de ter esta conversa . É um pacto educado, mas hipócrita, para não complicar a existência. Ninguém gosta de não ter explicações plausíveis para as coisas.   É nisso que Tertuliano agora pensa, uma vez mais e sendo recorrente, encostado à amurada do navio, vogando sem preocupações, nem tormentas, ele e o seu amigo cachimbo num côncavo, um útero protector, a sua mão esquerda. Para Tertuliano a mão que vale. Tertuliano quando pensa, e nisso não difere de outros homens, pensa olha