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A mostrar mensagens de outubro, 2022

O MEU CÃO TEM PELO MENOS SESSENTA ANOS

  Afinal o Tôto, o cão preto e caçador, companheiro do meu avô e que tinha esse nome por ser a zona onde o meu tio, seu filho, fez a guerra, num país em África, ou seja, não a fez, assistiu a ela porque teve a sorte de ser amanuense, não morreu, nem o cão nem ele. O Tôto, que eu cavalguei a mimetizar touradas no pátio na Afonso III, o pátio onde com quatro anos, me enamorei pela primeira vez, pela menina do pátio ao lado, já não me lembro do nome dela, mas enamorei-me tanto; o mesmo que veio ter comigo a casa, quando os meus avós foram viver para Algés de Cima, e ele, certamente cheio de saudades minhas, pôs-se ao meu caminho, e quando alguém se põe ao caminho de alguém, mesmo desconhecedor e assustado por esse caminho, não é um acto único e absolutamente magnífico? Ainda mais um cão a fazê-lo por nós? É que afinal, o Tôto nunca deixou de estar comigo e no intervalo de tempo em que estes episódios se passaram e o dia de hoje, fui eu que andei distraído: neste mesmo momento o Tôto a

O CALOR

Por vezes visita-me a memória de um calor que já não existe, um calor materializado, com uma muito particular sensação de temperatura, de cheiro próprio, com contornos, como se não pertencesse ao reino das sensações subjectivas, mas ao reino dos seres. É um calor de quando era pequeno, naqueles lentos dias de verão, algures, não sei se no Norte se no Sul, uma casa, talvez de férias, na hora da sesta, o silêncio a conseguir ouvir-se, um zumbido ínfimo, se calhar era o zumbido do calor e eu a achar que era o silêncio a sussurrar conversas. Já não há esses calores. Eu resistia ao torpor do ínicio da tarde, tentava não dormir, e abria as portadas verdes da janela com ripas, e convidava o calor a entrar.  Enchia o quarto sombrio de luz. Brincávamos juntos, a inventar enredos com dois personagens, ele e eu. As crianças não conseguem estar paradas, menos as de natureza contemplativa, que se manifesta precocemente, mas só mais tarde os efeitos se farão notar. Brincava não sei agora como, não

O ANCÓNIO

O meu pai organizou a sua vida em fun çã o do Ancónio , um c ã o Epagneul Breton que o filho mais velho, eu, fez o parto e cortou a cauda, como era prática nesse tempo. Tinha esse nome estranhíssimo, dado pelo meu irmão que na altura aprendia um pouco da anatomia do corpo humano, como parte da sua formação em Belas Artes, nome dado a um músculo ridículo e vá-se saber porque o meu irmão resolveu dar esse nome ao cão que não teve nenhuma culpa de ser chamado publicamente dessa forma bizarra. Os filhos sa í ram de casa – se soubessem o que os esperava, tinham ficado até aos quarenta - e considerando que lhes faltava aos pais, uma razão de ser, um objectivo existencial, deram-lhes o cachorro. A minha mãe, como sempre fez de forma exímia, omitiu a existência do bicho, e se ao filho mais velho, eu, chamava pelo nome do seu mais que tudo, o meu irmão, o animal, apesar de Ancónio, também passou a ser e muito chamado à razão com o nome do meu irmão, que a minha mãe, por obsessão, teimosia, o

O QUE SE SONHA E O QUE SE É

Sonhei, já não vou ser um navegante curioso, de mares incógnitos; já não vou ao sabor de rumos perdidos, desnorteado pelas bússolas, doidas e desmagnetizadas por culpa das acções dos homens, que alteraram a harmonia da terra; não vou passar cabos tormentosos a pique, nem defrontar monstros aterradores; não chegarei a dizer, aproveitando os ventos que sibilam, que venho da terra dos Descobridores, que se apaziguem as águas e as tempestades, para eu poder passar. Sou marinheiro de natureza e feitio e tenho pressa de amarar em todos os portos e aprender a falar línguas desconhecidas e complexas, e dar-me com todos que venho por bem e todos quero conhecer. O tempo, esse inexorável carrasco dos sonhos, cilindrou o meu desejo, empurrou-me para outros futuros. Começo a chegar tarde a tudo e as portas fecham-se com estrondo perante a minha incredulidade. Quando era pequeno, quando ainda podia ser tudo, até o impossível, queria ser marinheiro e possuir um belo barco de madeira envernizada e

A BOLA DOS TRAPOS

  A bola tinha uma redondez duvidosa, com altos e baixos, que não beneficiavam nem uns nem outros. Os resultados não eram influenciados pela sua irregularidade. Nem havia interesse pelos resultados. Estava feita de trapos e sobras, restos de roupa surripiados das mães e das avós. Remendos dos remendos de vidas difíceis. A bola era o eixo do mundo, um eixo móvel, naquele pedaço de rua também ela incomum, quase mal-acabada, cuja monotonia apesar de estar no mapa de uma cidade, era apenas interrompida por uma mula ocasional e entediada, que transportava, para cima, para baixo, a carroça do leite, indiferente à sua vida e a dos outros. Naqueles tempos parecia que não havia gente humana na gente que frequentava as ruas. Os transeuntes, recolhidos, ensimesmados, passavam apressadamente, encostados aos muros e às paredes das casas, procurando sombras, mimetizados, sublinhando o seu anonimato. Vinham e íam, a fazerem-se irreais, fumos, sem contorno nem rosto. Eram tempos de medo. As crianç