Vejo um cemitério onde, sem mais movimento humano do que dois homens, em silêncio, jogam as cartas. Atiram-nas e biscam-nas numa laje fria, revestida por caracteres desconhecidos e ocultos talhados em sulcos profundos. As lajes todas idênticas, perfilam-se criando simetrias perfeitas no espaço do jardim. Os homens encontram-se protegidos do calor intenso, pelos ramos exuberantes de uma árvore antiga, solene como o cenário e como eles, jogadores pagãos, que executam o ritual das cartas como se estivessem a praticar um acto de grande espiritualidade. A incongruência desta cena, que pode parecer chocante, uma heresia, dilui-se na atitude circunspecta, contida, dos jogadores. Dois amigos. Um, numa ambulância postal, ultima carruagem do comboio, entrega o correio na fronteira do país vizinho dilacerado por uma guerra fratricida e absurda. O outro é o coveiro desse cemitério. Vieram os dois, um dia em que eram jovens, de um algures no interior. Pontos sem nome nem localização geográf...