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Mensagens

A mostrar mensagens de novembro, 2022

DIA CHUVOSO

    Onde andam os meus, que já não habitam a casa onde moro? O Mário, a Maria? O António, a Amélia? Onde estão eles? O Albano, A Custódia dos olhos de mel? A Florinda do olho de vidro? A suave Silvina? O Virgílio, comediante sério? De alguns, os ecos são longínquos e quase inaudíveis. O Américo, a Lurdes, o Carlos que cantava canções de amor? O Carlos, menino eterno da Terra do Nunca? Distingo algumas vozes, outras esfarelam-se no pó do tempo. Há rostos deles, bem desenhados e completos; outros que são nevoeiro. E o Jorge tranquilo e demasiado prematuro? Onde andam os meus nesta casa nova que não conheceram? Andam comigo, eu trouxe-os, mas alguns já mal os sinto. E não queria. Estão todos nos fiapos das recordaçõs. Salpicam intermitentemente o meu quotidiano quando emergem, sem pedir licença, na espuma dos meus dias, para se afundarem de novo nos labirintos da minha memória. O mês de Dezembro é um mês cruel. Tem uma cratera aberta no breu da solidão. E não tem

FUI EMIGRANTE UM DIA

  A minha doce Catarina. Ainda não sabia ser adulto e já tinha a minha Catarina. Não soube ser um bom padrinho, mas gostava de ser um bom padrinho. A Catarina ao colo da Isabel e do João. Acenando despedidas, na estação de Santa Apolónia. Ficou uma fotografia desse momento. Os ecos de um amor traído, repenicavam por todas as ruas e becos da cidade, ecos insuportáveis. Uns emigravam à busca do pão, eu emigrei à busca do esquecimento. E fui para a SuÍça – ía – nesse final de dia de Setembro, passageiro no Sud-Express . A Catarina espantada e bem-disposta, a Isabel e o João a disfarçarem alguma emoção, eu, cheio de medo do desconhecido, a fazer um sorriso de conveniência. O comboio levava um carregamento de sonhos, dos que iam para a França e para a Suiça, uns às vindimas, quase todos com a esperança de poderem ficar e recomeçar as suas vidas com a dignidade que este país só dá aos espertos, esses, que deveriam ser os indignos. Eu ia para me curar do amor e esquecer, que dizem ser o melh

FEIRA DA LADRA

  Foi numa manhã de primavera que a conheci, e gosto que tenha sido nessa manhã e naquela ideia feita do tempo da renovação da vida que se cola a esta estação do ano. Foi há uma vida que esse dia e essas condições particulares aconteceram. Agora, já está tudo nebuloso e intermitente. A visão e a memória.   Gosto que tenha acontecido aquele dia assim. Na despedida do mês de Abril, quando o sol, nos intervalos dos plúmbeos dos céus que se resolvem da chuva até que o outono dê de caras, que começa a acenar-nos com a promessa de tempos mais despejados e calorosos. Há dias de Abril como não os há noutros momentos do ano. É o mês da renovação da esperança. Da utopia da igualdade. Da quimera da liberdade.    Fui cedo, ao romper do dia, para conseguir um bom lugar. A feira da Ladra, levanta-se com a noite, quando toda a cidade ainda sonha sonhos e pesadelos, sabendo que amanhã é sábado.   Seriam umas sete horas da manhã, quando estendi uma toalha de mesa, cor carmim e com relevos brocados, pel

CARRINHOS DE CHOQUE

  Monte Gordo. Uma praia tropical. Para mim era e segundo a opinião do meu pai que percebia imenso de praias tropicais de nunca ter estado em nenhuma. Água quentinha. Para quem, como eu, estava habituado às temperaturas quase gélidas da praia de Paço d’Arcos, o mais longe que o meu avô nos levava, para branquear (aos olhos do mundo e bronzeá-la a ela), a amante que o acompanhava e que nós pensávamos que era nossa tia, esta água é mesmo quentinha. Quase sem ondas, anda-se e anda-se e estamos sempre com água abaixo das rótulas. E muitas conquilhas.   Foi uma paixão de rompante, a rasgar emoções que ainda não conhecia. Jurámos eternidade numa pista de carrinhos de choque. Em Monte Gordo.   Nesse relâmpago que nos entonteceu e revirou o mundo às avessas, apesar de estar a frequentar pela primeira vez uma praia tropical, consumi todas as férias, especado umas vezes à espera da abertura do recinto, enaltecido outras quando a via chegar, e íamos, cada um no seu carrinho, executar um longo bai

NÃO HÁ AMOR COMO O PRIMEIRO

Uma deusa, num pedestal. Cinquenta quilómetros, com as voltinhas todas, montado numa Honda Amigo , com pedais, mas artilhada: o escape roncava como um leão. Deixei nesse dia as aulas a falarem consigo próprias, matemática e física, eu que queria Letras mas não pude porque para o meu pai, ou era Engenharia, ou Económicas, ou Direito , e o resto era conversa, e eu a achar que o amor se sobrepunha a tudo isso. E fui atrás dele.   Nunca mais lá chegava, e o amor a chamar-me, e eu apressado e desajeitado nestas coisas do amor, tudo era novo, a primeira vez, e a querer atender ao chamamento.  A bicicleta motorizada a dar o que podia, honesta nos seus limites, íamos para aí, no máximo, uns trinta por hora. E o vento, que seja a que velocidade se vá, está sempre a fustigar-nos, a dar-me estalos na cara, como se estivesse montado num foguete norte-coreano.   Era tão avassaladora a vontade de lhe manifestar o meu amor primeiro, ou paixão, ou o que se lhe dê nome, nessas gradações de um cora