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A mostrar mensagens de março, 2022

O meu avô era caçador e tinha um cão

O meu avô, apesar de respeitar a natureza, os animais, as plantas e a harmonia de todos, era caçador. Era um homem do campo e por isso era caçador. Veio e completou-se homem na cidade, mas o chamamento, quando se manifesta é mais forte do que a sua negação. Como não podia ter uma horta dentro de uma casa exígua, passou a ser caçador aos fim-de-semana. Os caçadores têm um cão, ou mais do que um, até têm furões, parece que ilegalmente. Ele tinha um cão, amarrado na varanda do apartamento e só ganhava a sua liberdade de cão aos domingos quando ia caçar com o meu avô. Rapava o tacho do tempo, e corria, corria desalmadamente, como se fosse a sua derradeira corrida e havendo que aproveitar essa sensação de leveza e poder, corria até mais não. Umas vezes acertava na direcção onde tinham caído as peças abatidas pelo meu avô, outras ia em sentido contrário, pouco lhe importava, e o meu avô, de um cão preso numa varanda toda a semana, não podia esperar mais, nisso era complacente. Nunca lhe ouvi

DESNORTE

  Estavam num teatro e morreram. Não porque se representasse um drama, uma tragédia terrível e muito intensa, que pela emoção causada, muito forte, muito forte, tão forte que inaguentável, matasse os espectadores. Não. Estavam num teatro e morreram sem que se estivesse a representar alguma peça. Foi o real que aconteceu, com a sua nudez, e por vezes crueldade, que os matou por estarem li, talvez mesmo por essa razão: porque estavam ali. Não tinham para onde ir, esgotaram-se todas as opções. A guerra não se abateu mortal sob o teatro, abateu-se por todo o lado e as pessoas não tinham pontos de fuga, as bússolas deixaram de funcionar, perderam os caminhos certos das grutas escuras e frias e doentias e irrespiráveis, mas que lhes davam protecção. E quando é assim, quando se perde o norte e o sul, perde-se a luta contra a guerra, que se apodera dos nossos cadáveres, insaciável, nós que perdemos o sentido de orientação e já deixámos de saber viver. Ou desistimos

AS CEGONHAS

  Até tempos recentes, as cegonhas traziam equilibradas nos seus longos bicos as grandes obras dos homens, seus maiores tesouros, e entregavam-nos em todas as partes do mundo segundo planos e organização logística que desconhecemos, mas muito bem organizadas. Não interessa para a história o hiato temporal em que as mulheres grávidas e com grandes barrigas, aparecem de um momento para outro livres delas, lisinhas, que é o preciso instante, em que a cegonha, bica-lhes à porta com um recém-nascido adormecido e agradado, pelo balancear pendurado no bico, durante o voo que o trouxe pela primeira vez a casa. As cegonhas deixaram de fazer este serviço, há demasiados aviões que não lhes ligam nem a ninguém e são senhores do espaço aéreo. Elas atrapalham-se e sendo um trabalho de responsabilidade não arriscam entregar a mercadoria com defeitos, pelas alterações constantes de altitude e velocidade, a fugirem dos aviões, correndo mesmo o risco de deixá-la cair no abismo das alturas. É por essa ra

INQUIETAÇÕES SOBRE CORES

É em dias saturados a cinzento, que me falta o céu azul. Para o voltar a ver, fecho os olhos.  Sonho, e é então que tudo se aquieta na minha persistente inquietação, e consigo, descansado, enlear algumas palavras, um jogo de sombras e luz, o preto impresso no branco, que vou desenhando todos os dias nas folhas de papel macio e quente dos cadernos, os mesmos há anos, escolhidos em viagens e deambulações em lojas improváveis, ou comprados quanto tenho o chapéu pousado no bengaleiro, e fico, no mesmo local de sempre, numa certa pequena rua de Lisboa. São as poesias que dedico ao céu. Preencho os cadernos, todas as folhas, todas as linhas, e guardo-os, em fila, numa prateleira no meu quarto. Quando estou deitado, à noite somando e subtraindo sobre o dia que passou, ou de manhã acordando na expectativa triunfal de que estou a acordar para o melhor dia da minha vida, ponho os olhos neles, quase todos pretos e discretos, e vendo-os ocupar mais espaço na prateleira, sensibiliza-me. Está ali

CASACOS DE PELES

  Naqueles tempos, que podiam ter sido outros, outros finais de história, conjugação de factores e foram assim, dava-se muita atenção à apresentação das pessoas. Hoje também, mas é diferente, andam muitos a aparentar o que não são, endividando-se com vestimentas e objectos exteriores de riqueza, ou então, nos extremos, revestidos com excentricidades tribais. A normalização, pelo rasteiro, tomou conta de tudo. Naqueles tempos que os digo meus, porque foram os que presenciei e tive um pequeníssimo papel como figurante, na cena que representei no palco com alguns milhares de milhões de homens e mulheres que estavam vivos nessa altura, uma pessoa, andando numa rua de uma cidade qualquer identificava facilmente o patamar social de um transeunte com que se cruzasse. Adivinhava-lhe de imediato o seu estrato, e mesmo havendo, que sempre os houve, fura-vidas, com um olhar mais detalhado logo se encontraria um pormenor, um descuido, que denunciava a fraude. Até deslocando-nos de uma cidade g

CELEBRAÇÃO

Não encontro outro sentido senão celebrar a mulher todos os dias, como todos os dias celebro o homem e todos os outros humanos que têm agora uma identidade que desconheço o nome e o género. O mundo anda tão depressa e eu já não corro bem, não consigo ir atrás de todos os nomes, mas o que conta é que os celebro a todos. E também os estorninhos, e os brincos-de-princesa, e formações geológicas que não sei como se chamam. Mas celebro-as. Com isto, resolvi uma grande questão: não preciso de me preocupar com as celebrações e ter que todos os dias, fazer uma frase bonita e adequada para dar os  parabéns a estes e aqueles, não me vá esquecer de algum, que chatice. Poupo igualmente na utilização nos adjectivos, para não os gastar em demasia, guardando-os para ocasiões próprias, celebrações do foro intimo que fujam da mundanidade. Celebro a vida, o seu todo e particular, e os mundos finitos e infinitos e os inimagináveis a que não chego nem pelo pensamento. E dou-me bem com isto, não falho

AMBULÂNCIA-POSTAL

  Uma ambulância, postal. Não uma ambulância naquele sentido de serem anunciadoras de uma urgência, com luzes piscantes, sirenes agudas. Chamava-se assim mas não se sabe porque se chamava assim. A ambulância era uma carruagem de comboio, a última, contando desde a primeira, da locomotiva no sentido da retaguarda. O espaço interior dessa carruagem estava dividido em duas áreas: metade, uma espécie de armazém, a outra metade, um escritório. Nem isso, uma imitação de uma loja de correios. Neste caso, ambulante. A metade escritório estava forrada de prateleiras quadriculadas, com nomes de localidades, escritos à mão. Não havia códigos postais, só localidades. Uma bancada de madeira corria a toda a extensão dessa metade escritório da carruagem. Em fila, carimbos alinhados por uma ordem emanada dos correios que desconhecemos agora. Também selos metálicos, em relevo, para lacrar, a fazer prova de inviolabilidade dos documentos. O meu avô Mário trabalhou nas ambulâncias postais e reformou-se a

A QUINTA

Sentávamo-nos os dois e tínhamos longas conversas. Ou melhor, ele desenrolava memórias, como numa fita de celulóide a passar numa máquina de cinema antiga, contando-as pausadamente como relíquias orais que pouco se contam agora. Eu quase não me fazia notado, quase invisível, a ouvir com toda a atenção, para me recordar mais tarde, ficaria eu, algum dia, o fiel depositário desse tesouro e teria de as tratar bem e sabê-las de cor, para serem verosímeis na minha voz, mais não fosse contando-as para mim, ao adormecer, todas as noites, embalado por histórias de tempos e pessoas que deixaram de existir, como eu, um dia. Para que ele respirasse e acrescentasse drama e emoção ao que ia contar a seguir, mesmo que fosse só para acender um cigarro, fazia-lhe perguntas. Ele deixava-se levar, sabendo que com isso eu queria ganhar-lhe tempo, para me concentrar melhor e absorver todos os pormenores e detalhes. Sentávamo-nos os dois na parte de trás da casa, que não precisava de estar tão bem pint