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Mensagens

A mostrar mensagens de abril, 2020

O MELRO

Nas janelas do prédio em frente assisto a movimentações de sombras, semi-obscuras, seres viventes. Um homem idoso, sempre com o mesmo pijama, fuma um cigarro, olhando de relance para a rua e volta rapidamente para uma zona sem luz em que o deixo de ver. Vê-se pouco esse homem, abeira-se pouco da janela. Tenho a sensação, talvez errada de que fuma desistidamente. Uma menina ainda muito menina, dá pulos e pulos no sofá branco da sala e consegue-se perceber isso melhor, em determinados momentos do dia quando o ângulo da deslocação do sol permite incidir a luz na janela. A mãe da menina, cola animais e flores recortados em cartolinas coloridas, na janela da sala, talvez para a menina imaginar que a paisagem, lá fora, é todos os dias diferente. Eu, que não sou a menina, imagino, e gosto. Um homem, janta todos os dias à luz de velas, sozinho, compenetradamente, não sabemos o que estará a pensar. Nunca vem à janela. Dá a sensação de ser um homem solitário, pela forma

PROCURA-SE FLOR SÉRIA PARA COMEMORAÇÃO

Procuro uma flor. Deverá ser de cor vermelha, que esteja de acordo com um relacionamento sério, que confie e aceite que vamos por aí dentro de poucos dias. Ela na lapela e eu lampeiro, orgulhosos e vaidosos, a anunciar que a primavera, o tempo do tempo que abre e despeja, se anuncia triunfante, independentemente das contrariedades. Não podendo sair e que ela não me encontre, invento uma, faço-a com as minhas próprias mãos e de seguida pinto-a da cor que lhe é devida. Então saímos juntos, a debruçarmo-nos na minha janela, e cantamos alto e bom som, aquela canção que conhecemos e nos deixa com uma lágrima no canto do olho. As comemorações brindam-se no coração, se não virmos ninguém nas ruas, não é motivo de preocupação: é porque estão como nós a festejarem a sua e a nossa liberdade.

NEGRO DOS OLHOS

Os olhos, redondíssimos, enormes, eram de um preto límpido, cor pura. Sobressaindo ainda mais e hipnotizando onde os pousa, cercados de branco cristalino, o branco absoluto. Deixou-me uma impressão forte, cunhou-me a ferro e fogo, um instantâneo para mais tarde recordar, num desses dias preguiçosos, em que memórias sobem à linha de água, para nos atormentar com coisas passadas, ou então deliciar-nos. Será o caso. A mais franca das vontades, não encontraria palavras para descrever essa beleza, para mais apimentada de mistério, já que do seu rosto, a anunciar pelos olhos, nada mais se podia ver. Fica o jogo da imaginação, ou a desilusão sem possibilidade de um reencontro futuro. Essa mulher em todo o seu potencial de ser lindíssima, mas não o saberemos nunca ao certo, tinha o rosto tapado, por uma máscara obrigatória. Lembro-me dos rostos enigmáticos das mulheres de niqab, negros trajes a caírem pelos seus corpos com contornos e sou transportado para outras ge

DA MULHER QUE LIA UM LIVRO

NÃO RESISTO É mais forte, é um impulso, não me contenta a observação, tenho necessidade de saber mais, compreender. Só conhecendo-a, mas isso é precisamente o mais difícil. Dada a minha natureza tímida, muito tímida diria, abordar um desconhecido, partindo de mim essa acção, é praticamente uma impossibilidade pessoal. Primeiro perco um tempo imenso a pensar em estratégias de abordagem, em alinhar um discurso que seja coerente, que faça sentido. Colocam-se tantas dúvidas que dificilmente chego a conclusões finais sobre o guião desse discurso. Seguidamente, e porque começo a ficar mais irrequieto, decido se, nessas condições, devo ou não avançar. Vejo e revejo cenários. Mais nervoso ainda. Vacilo muito. Quando avanço, nem sempre atinjo o objectivo proposto, já que ou tropeço quando estou na eminência de me aproximar do desconhecido, e volto atabalhoadamente para o ponto de partida, desistindo; ou balbucio umas palavras e gaguejo, ficando na posição sem ponto de fuga d

IDENTIFICAÇÃO DO VOYEUR

Chamo-me Nuno e sou eu o homem que observa, no jardim, a mulher que lê livros. Observo-a não só a ela, mas a praticamente todos os que despertam a minha curiosidade.  Confesso que sou assim desde que me conheço.   Sempre preferi estar sentado na periferia de onde está a ocorrer a acção, num ponto de invisibilidade, sorvendo todos os pormenores do que se está a passar à minha volta. É tão forte esse vicio (não sei se o é), que sou muitas vezes apanhado a olhar como um basbaque, insistentemente, talvez assustando alguém que por uma ou outra razão, ou mesmo por uma razão muito desinteressante para a generalidade das pessoas, atrai a minha atenção, deixando-me colado a ele, ou ela, ou à coisa. Não tem nada a ver com o outro sexo. É indiferente. Pode bem acontecer que ponha as vistas num casal aparentemente banal, e não despegue. Assim como pode acontecer que as ponha numa composição de flores que por algum motivo ache desenquadrada. Não sou um perfeccionista, não é isso.