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A mostrar mensagens de novembro, 2020

REENCONTRO

  No afã de nos vermos que era uma ocasião usufruída e gostosa; no sufoco dos abraços, beijos, conexões do meu corpo com o teu e do teu com o meu, vontade correspondida;   na urgência que tínhamos definida de lançarmos palavras redondas e doces um ao outro; na necessidade, sim isso mesmo, de marcarmos para o reencontro, hora certa em todos os momentos que nos eram possíveis; em toda essa maré cheia de sensações, arremessos de amor e desejo; tatuagens pigmentadas em tons fortes nas nossas almas, cicerones de nós; em toda esta maré alterada em que nos encontramos, não deixaremos de desfiar o fio de Ariadne, que nos guiará um ao outro, no momento em que esta tempestade incongruente passar, e num céu novamente rasgado, como se fosse o primeiro céu do mundo, e na amplitude de todas as possibilidades, assistiremos ao nosso reencontro, embevecidos e apaixonados, como se nos tivéssemos a ver pela primeira vez. E estaremos.

CARTÓGRAFO DO DESCONHECIDO

  Despertou cedo, foi passear. Vestiu roupa simples e cómoda, calçou umas sapatilhas afeiçoadas aos pés, fechou a porta delicadamente para não incomodar os objectos que repousavam na réstia silenciosa de noite que ainda fazia escuro. Quando fechou a porta de casa e deixou para trás a do prédio, alisou-se à sua frente uma passadeira vermelha, imaginária, ou talvez real. Encheu-se pleno de si, o pé direito fez o primeiro gesto, andou, um passo, desafiou o parceiro do lado. Estava um tempo agradável, nem frio nem calor, ideal para grandes caminhadas. Ciciava uma aragem apenas detectável, propicia. Os primeiros passos, comedidos e lentos, estimulados pela perspectiva de um excelente passeio, cedo se ficaram afoitos. Aumentaram o ritmo. Assim foi andando. O caminho que ele não escolheu, foi escolhido, apresentou-lhe novas possibilidades, escolhas, inúmeras ramificações oferecidas, como árvore desenhada no chão, e ele confiante, aceitou, decidindo naturalmente a direcção das encruz

FUNCIONÁRIA PÚBLICA EXEMPLAR

  É uma só pasta, das grandes, a lombada. Suporta muitas folhas, centenas talvez, também separadores. Agora são precisamente nove horas e quarenta minutos, de um dia de semana. Às nove horas e dez minutos, arredondando, um ligeiríssimo atraso que não se dá conta, ela entra no edifício e cumprimenta a menina Albertina. Na sua carreira fidelíssima ao Estado, a menina Albertina conheceu dois postos de trabalho: Porteira e Assistente Operacional de Recepção. Veio trabalhar para o Instituto, uma gaiata, com tranças e laçarotes e tudo. O seu pai fazia uns favores ao Senhor Doutor. Informações e isso. Pediu-lhe emprego para a filha e este aceitou-a. Uma mais no meio de tantas afilhadas que tinha. Praticar o Bem, o que ele fazia. Albertina perdeu as tranças com laçarotes, endureceu de feições e não casou. Tendo a escassa família vindo a desaparecer por causa naturais e pela lei da vida e das precedências, ficou sozinha. O Instituto é a sua família. Falam as duas sobre coisas do quotidiano,

NÓMADAS URBANOS - AMOLADOR

  O amolador ao nascer do dia sai do local onde vive que não se sabe onde é porque ninguém sabe onde vivem os amoladores, e na sua bicicleta amoladora percorre com uma paciência de pastor de um rebanho imaginário, as ruas e as vielas das localidades, grandes ou pequenas. Todos os amoladores foram pastores nas suas terras de origem o que não é verdade, mas fica bem para esta história. A única coisa que os compara é a solidão dos dias que passam e o estado de permanente movimento: uns por vales e montes acompanhando as alimárias que não falam e não se cruzando com ninguém de senso, outros anunciando a sua presença com uma melodia simples tocada numa flauta de amolador, sempre a mesma, coisa-música encantatória, e recebendo de mãos silenciosas na porta de prédios anónimos o seu trabalho de afiar. Os amoladores são nómadas e os pastores igualmente. Nómadas com código postal. Não só se comparam na solidão que ambos vivem, como noutras coisas mais banais: como praticarem profissões i

DO PODER - REVISITAÇÃO

  Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodear o poder, tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizados por essa dança rude, primordial.   Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para se elevar a um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se, deixando-se fluir por essa torrente de emoções.   Os efeitos da mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas que não estão na lógica das coisas. Práticas do bem e do mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva a equilíbrios de funambulista.   O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escon

DIÁRIO DE DIAS FUTUROS - HABITANTES DO GRANDE DESERTO

  Estarei a sonhar? Sonho acordada? É real isto? Ou é uma realidade inventada pela minha mente que não está bem? Não tenho respostas. Habito num deserto. Um deserto a perder de vista. Se isto é viver, pode ser, mas será viver no limite do viver, onde quase viver não é mais possível, porque se está na fronteira. Um pouco mais e a vida deixa de o ser, para ser uma outra coisa, que não sei como chamar porque desconheço. Somos uma dúzia de famílias, somos nómadas permanentes. Sempre na procura de água, dos alimentos frugalíssimos que nos mantêm vivos. Ocupamos tendas que mal nos protegem das condições inumeráveis do clima. Inclemente, fatal. Viajamos em barcos que navegam em terra, nas areias douradas do deserto, locomovidos pelo vento. Direcionados por este quando enche as velas feitas de panos gastos. A água, esse bem tão precioso que não soubemos preservar, é o elixir da vida e é tão escasso. Umas vezes falta-nos, outras, em que chove torrencialmente durante dias, uma água salga