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Vá para fora, olhando para dentro.

 

No verão podemos divagar e flautear a cabeça nas coisas sem peso, acompanhados, e a pedir, pelo corpo que reclama lassidão, descompromisso, prazeres do momento. São os dias alongados, quentes, o tempo das férias, os dias em que os relógios do tempo fingem que se detêm, para os praticantes das artes da preguiça.

No verão, o país debruça-se em fila num beiral a olhar para o mar, antes de pôr os pés de molho nas praias que lhe desenham os contornos.

Dão costas ao que resta do país interior, que é a maior porção do país. E no interior, para quem conhece os segredos e tem curiosidade de procurar, também há praias para refresco dos pés.

Casal de São Simão é uma aldeia de xisto, no concelho de Figueiró dos Vinhos. Reza a lenda (as lendas são as realidades oníricas que dão densidade aos lugares e as pessoas) que um casal de passeantes a descobriu, em ruínas, e comprou uma casa que renovou. Chamaram os amigos que compraram outras casas e agora é uma pequena comunidade de amigos, com um restaurante muito bom, erguida e senhora de si num pico de um monte, observadora e espia das Fragas de São Simão, onde no seu regaço, corre um riacho fresco de águas serpenteantes que criam pequeníssimas praias naturais, pintadas de um cenário de pedras e árvores, numa paisagem quase rude e primitiva.

A caminho desse pequeno paraíso recatado e sem propagandas nem grandes divulgações, existe uma aldeia encantadora. Ana de Aviz. Pode parecer que o tempo parou, e que os seus habitantes, poucos, recolhidos no centro de convívio, esperam que o tempo passe ao lado e não os incomode na continuação das suas vidas sem preocupações metafísicas.

A simplicidade e o prazer de uma conversa, um jogo de cartas animado, tricotarem-se linhas fazendo camisolas, enquanto se contam coisas da intimidade de uma pequena comunidade, é o melhor que se leva daqui.

Uma aldeia espraiada nos socalcos suaves de uma colina, desdobrando as terras mais ou menos cultivadas de quintas antigas e com apelido, ou então, pequenas porções de terra, onde germinam a seu tempo, os essenciais de uma alimentação familiar sem pretensões.

Em Ana de Aviz, também há uma pequena praia fluvial, com uma represa a desenhar uma piscina natural e fresca, e um relvado onde os corpos, antes da sesta, se podem esticar, abrir os braços e as pernas, desenhando a figura do homem vitruviano, de Da Vinci (fossemos snob e presumidos nas referências), fixando o olhar para o azul do céu, não vá terem a sorte de descobrirem o voo transparente dos anjos, na sua constante azáfama do céu para a terra.

Ainda no Concelho de Figueiró dos Vinhos, o rio Zézere, rio absolutamente português e patriótico, une-se à foz da Ribeira de Alge e forma uma extensa e desafogada bacia, onde os pescadores entretêm nas suas coisas de pescar peixes ou esperar por eles, as pessoas tomam banhos e sóis, e a nova comunidade estrangeira residente nessas paragens, se encontra piquenicando e convivendo nos dias de descanso semanal.

E depois são as árvores, imensas, e muitas, que vestem quase toda a paisagem destas terras do Pinhal Interior Norte. Símbolos de vida e futuro, também fantasmas que assustam. Porque o passado é recente e foi terrível, porque o cenário não foi substituído, porque a convicção não é muita, a vontade de mudança cansou-se só de pensar nisso.

Se os que estão de borco a olhar para o mar, se virassem de costas, perceberiam que existe este país escondido, verdejante de atrações naturais. Talvez um dia. Até lá, São Simão, Ana de Aviz, Foz do Alge, são só nossos, o segredo mais bem guardado.

 

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