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Mensagens

A mostrar mensagens de 2024

Aqui para nós

Ponderei maduramente se deveria escrever estas palavras e expor o meu pensamento a esta comunidade de Figueiró dos Vinhos, que tão generosamente me recebeu. São os meus receios e preocupações e considerei um imperativo moral de partilhar com os outros, e que isso possa entreabrir uma porta de reflexão, diálogo e opinião. Vivemos num país onde a democracia não cedeu lugar à existência do espaço público (esse espaço foi ocupado pelos meios de comunicação onde os comentadores são os mesmos políticos que comentam, numa lógica de circuito fechado), anfiteatro aberto onde os cidadãos, com espírito crítico e pensamento responsável, pudessem desenvolver os seus direitos de cidadania e opinião. Esse espaço inexistente, resume-se ao círculo mínimo dos convívios eventuais nos cafés e nos bares, aos chistes, nas festas das comunidades, mais em jeito de dizer mal por dizer mal, do que o sentido adulto de manifestar e dar a conhecer o pensamento pessoal para se frutificar na conversa, avançando

Adega dos Passarões

Imaginando o oeste longínquo - o faroeste -, salpica-nos como um instantâneo, a imagem do “ Saloon”, um local de encontro, bar, lupanar, uma hospedaria e residência penúltima antes da cova, dos que tinham o azar, ou a aselhice da lentidão, ou falta de acerto, na pistola pesadíssima que desembainhavam dos coldres pendentes nas ancas, e que chegavam com um atraso fatal ao momento do tiro, matando os desajeitados e reafirmando a vida dos que acertavam no momento devido no gatilho. Esse faroeste é o dos filmes dos vaqueiros, das terras sem lei, dos índios que tinham os melhores cavalos, selvagens como eles, os que melhor se vestiam, longas tiaras de penas vistosas, olhar indomável, mas eram os que perdiam sempre. Parece que existiam para isso mesmo: perderem ainda mais do que os desajeitados da pistola, que ainda assim eram brancos e estavam acima na hierarquia das espécies humanas criadas pelos deuses, e devidamente estratificadas, para não haver mais conversas nem atropelos de poder.

Fonte das freiras

  Ir rompe das entranhas da terra, força bruta, uma mina de águas. Grito de vida, apressado caudal desvairado, atrás da gravidade, vai dar de beber a outro mosteiro, de portas fechadas, restam os fantasmas dos seus habitantes contemplativos. No pequeno largo onde existe essa mina, existiu antes um convento de freiras em recolhimento e prece. O tempo é um carrasco imperdoável. Carne e o espírito esfumam-se, as obras de pedra e outras têm vidas mais prolongadas. Ficou uma parede com o recorte de janelas e portas, mas é só uma parede, de um lado e do outro o vazio, o nada, como que a dizer que tudo é efémero e em poeira se transforma. E isso nada tem de religioso, espiritual que seja, é uma evidência natural dos sedimentos do tempo. Nada mais. A alguns, atentos, sintonizados, poe-nos em sentido: a existência é curta, sejamos decentes, connosco próprios, com os outros, com o que encontramos nessa natureza tão esplendorosa que não merece aproveitamentos vãos, merece cuidados e afagos. N

La Pigalle, Figueiró dos Vinhos

Alguém já disse, nos altos de muita sabedoria, ou de convívio privilegiado com os deuses, que as igrejas, sejam humildes capelas, sejam catedrais cheias de retorcidos gongóricos, são os eixos do mundo. Explicand: a querer dizer que os locais de culto foram construídos em pontos sensíveis do planeta terra, funcionando como pontos ou de convergência de energias ou de expansão das mesmas. O que explicaria serem lugares onde se experienciam sensações, que nos reconciliam e unem ao universo. Isto é o que alguém já disse, dizendo também que o sagrado, o espiritual, estava nisso, e daí a entrar-se numa polémica sem perspectivas de saída limpa, é um passo minúsculo. La Pigalle , é uma praça e um bairro, em Paris. A sua história picante começa em 1881 com a abertura do cabaret Gato Preto . Em 1885 Maxime Lisbonne (nome curioso) de regresso na Nova-Caledónia onde tinha sido condenado a perpétua e a seguir amnistiado, abre a Marmita, onde apresenta espectáculos ousados e acaba de inventar o st

O Homem da cigarrilha mortiça.

   U m Morgado, é o que é. Ou, parece que é. Acabado de entrar, ou de saída, de uma novela bucólica, romântica, um ambiente do campo, florzinhas, e zumbidos, e vida parada e pacata. Um personagem das Pupilas do Senhor Reitor, ou da Morgadinha dos Canaviais . Quase um lorde, visto ao longe. Todo o ano, indiferente a tanta coisa, que até ao tempo, às suas condições, de bom ou mau, ou ameno, com o mesmo atavio. Bota de carneira, ou imitando; calça escura que pode ter sido fazenda com uma cor específica, que já não tem; e casaco. De veludo. Já foi creme há muitos, muitos anos. No cocuruto, que bem enterrado, nela, na cabeça, uma qualquer coisa objecto. Pode que tenha sido um boné, uma boina, um simples gorro. Totalmente indiferenciado pelo uso contínuo. Dormirá com ele? É possível. Já não é um adereço, é um apêndice. E uma esplêndida – se não fosse despicienda no tamanho – cigarrilha. Não se vê fumo nem cheiro, apagada estará. Uma reentrância no ar vazio, colada à boca, que no se

O CANTOR MORREU

  Morreu-se, hoje, sem nenhuma justificação plausível e aceite que pudesse justificar essa perda, um homem difícil de qualificar. Em significações léxicas imediatas: “afortunado”, “feliz”. Fausto Bordalo Dias. Na corrente rebelde e por vezes crispada de uma chamada música de intervenção, dispôs-se a seu tempo e jeito, num educado recato, colocando-se na segunda fila dos protagonistas das fotografias todas. Com uma música e uma lírica, deslocadas, aparentemente dissonantes, da aspereza dos acordes e da palavra de intervenção e dura, nas modas dos tempos, a sua, a contrariar pela lisura poética, doce, de uma sensualidade que desarranja os sentidos. Um fenómeno de magnetismo. A convidar o ouvinte a percorrer numa só sessão e num concentrado de picos e limites de emoções sensitivas, todas as direcções da sua Rosa dos Ventos, uma cosmovisão muito à frente dos tempos, nós, ainda tímidos do usufruto de liberdades novas e desanuviamentos. Para mim: “O Despertar dos Alquimistas”.

O PRIMEIRO FOLEGO

  Leio um livro de Maria Zambrano, “ Clareiras do Bosque ”, uma mulher que irradia um pensamento denso, místico, que flui nos rios profundos e submersos da terra, num caudal de remoinhos e velocidade vertiginosa. Uma escrita também poética, e sou levado a acreditar – talvez por sugestão -, que tenho impressa em mim, a memória que recorda o instante do meu primeiro respirar, o momento que inicia a vida, que a torna a seguir irreversível. A explosão violenta e obrigatória, assustadora, acompanhando esse ímpeto, vindo do absolutamente escuro, para a agressividade de uma luz que encadeia, demasiada, insustentável. E aí, nesse ponto da ainda ainda não história, acontece um episódio fugaz, antes da primeira inspiração e da ânsia de não se conseguir expandir os pulmões. Uma projecção incontrolável de um acto, numa cena estática no tempo, que ainda não está a contar. Uma cena só nossa, num hiato de vazio. Nesse esgar, a possibilidade de futuro, está suspensa no vir a acontecer. E desse vácuo

Recordações de Sintra

    O príncipe, D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gota, alheado do miasma humano que invade a entrada do palácio, cenário de uma invasão bárbara, pinta uma aguarela, uma vista com mar ao fundo. Enviuvou da rainha portuguesa, e casou com a cantora de ópera Helise Hensler, agora condessa d’Elba, que vive num belo chalet  de campo no bosque místico do palácio da Pena. Francis Cook, colecionador de Arte e mecenas, tomou-se de amores pela serra e construiu um palácio excêntrico (Monserrate), rodeado por um magnífico jardim com espécies de todo o mundo, uma pequena arca de Noé vegetal. Francis Bacon, o poeta romântico, numa visita anterior, sentou-se numa cadeira de jardim, nas ruínas que antecederam a nova construção, deliciado, e assistiu à quietude de um final de dia, na serra de Sintra. Quem sabe se flanando na sua cabeça, imaginações de poesias futuras, ele, um dos príncipes do romantismo. De outros palácios não se fala, que são muitos. Um monge, talvez frei Honório, que se diz ter v

O Caminhante

Recorta-se a figura do senhor Sommer, caminhando de manhã à noite, pelos sendeiros que marcam os limites de uma aldeia no remoto norte da Suécia. O Senhor Sommer passou a vida em movimento, até ao último dos dias em que visto visto, pois desapareceu completamente e nunca mais se lhe deu conta, e as pessoas - como é assim -, nos primeiros dias deram pela sua falta, e depois, com o pousar do tempo, esqueceram-no. Este homem, que deambulava com um rumo que parecia estar automaticamente inscrito na sua cabeça e decisão, existiu como personagem principal de uma história de ficção, um livro. Inventado, portanto, ou não, se concordarmos que as ficções também podem ser reais e se acreditarmos nas outras faces de mundos paralelos. Não se sabe nem desconfia, porque consumia ele todas as suas energias e empenho, executando esse movimento monótono de pôr um pé em frente do outro. Há quem diga que com essa monotonia se combate o tédio, o mais desaproveitado dos vazios. Outros e famosos, fil

SOBRE O CADERNO DE ABRIL E OUTRAS COISAS

Vej o silêncio na rua de casas brancas todas iguais Um homem, de semblante servil, alinha garrafas de vidro com leite, ao lado das portas. A melodia elementar de um amolador estilhaça o silêncio. Pode ser domingo Ao fundo da rua, um muro alto separa duas escolas primárias Os sons de um lado e do outro não se misturam nem materializam. As meninas, os meninos, dois mundos paralelos e separados. O encontro acontece na rua, depois das aulas, ainda assim cada grupo com as suas brincadeiras. Os rapazes mais acriançados, atiram bolas para as meninas, e elas com risinhos nervosos, mal fingindo que não gostam desse jogo do eclodir da puberdade Foi antes. Um passeio num carro eléctrico amarelo, com o seu bivaque de militar na cabeça, a sobrar-me no tamanho. Sempre gostei de fardas. E gostei dele, homem com cara de anjo, Sem tempo na ampulheta do tempo para nos gostarmos mais. Fascina-me o objecto estranho do revisor para picar os bilhetes. Fascina-me tudo no revisor.

CADERNO DE ABRIL - Canções Revisitadas - lançamento em Abril

  O Caderno de Abril é um livro que revisita canções que nos avivam memórias dos tempos escuros; canções de espanto e assombro em que o tempo ganha cores vibrantes de esperança; canções de quimeras e utopias. Uma biografia, uma crónica, um poema da existência de um homem banal, nos tempos que fazem a história.