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ROLLS-ROYCE

 


Quem anda num Rolls-Royce, nunca mais é a mesma pessoa. Quem anda num Rolls-Royce em pequeno, nunca mais vai ser a pessoa que sonhou ser a não ser que ainda assim a queira ser, apesar do abalo sísmico de ter andado num Rolls-Royce.

O bairro do Restelo em Lisboa, nos anos sessenta do século passado, antes da contaminação das embaixadas e das residências de indivíduos de duvidosa proveniência, cheios de dinheiro malcheiroso e desconfiável, era um bairro rico, mas pacato. Familiar, uma certa burguesia abastada lisboeta, que não era efusiva. Eram tempos em que se não dava nas vistas e quem tinha Rolls-Royce não andava por aí, a anunciar ao mundo, que o tinha.

O ambiente do bairro acompanhava o ambiente tépido e dormente de uma capital muito pouco cosmopolita e de um império provinciano e humilde.

Nada de particularmente interessante acontecia na cidade, a não ser as novelas das traições, dos adultérios, das misérias familiares humanas, sempre as mesmas, sempre repetidas, sempre monótonas e previsíveis.

A rua Soldados da Índia, uma linha recta, tinha à esquerda de quem sobe, pequenas vivendas onde residiam famílias recheadas de filhos, mais de dez em média, o que dificultava na escola a identificação pelo nome certo, por serem muitos irmãos, todos parecidos e vestidos de igual, a frequentarem os mesmo anos e classes.

Do lado esquerdo da rua, um muro branco que faz o perímetro dos Altos Estudos Militares, instituição onde generais aguardavam pacatamente pela reforma dourada, fazendo jogos de guerra e estratégia, enquanto, enfastiados, esperavam numa ansiedade mal disfarçada, pelo toque à messe onde se serviam bons e bem regados repastos opíparos, porque os generais, para compensarem do desgaste desses  jogos, tinham de se alimentar bem.

A rua termina num pequeno largo, mais ou menos ajardinado, dependendo da disposição para o trabalho dos jardineiros da Junta de Freguesia. É nessa rua que está a Escola pública Primária, que no meu tempo tinha um muro a separar a escola das meninas, da escola dos meninos.

De minha casa, a pé, até à escola, que era a subir, uns quinze minutos não mais. A volta dez, por ser a descer.

Acontece que os meus vizinhos, filhos de mãe inglesa, receberam um dia a visita de uns tios que tinham resolvido atravessar a Mancha e fazerem de carro a travessia da Europa, para visitarem a sua irmã, coitada, a viver num país meridional. E vieram de Rolls-Royce.

Como estudávamos juntos, os tios, simpaticamente levaram-nos, talvez durante uma semana, à escola no seu refulgente Rolls-Royce.  Não direi que me senti a rainha de Inglaterra, mas segreguei nesses curtos trajectos, uma vaidade transbordante e fútil.

Era ver-me dentro de um palácio com rodas, a acenar como um monarca, aqueles desgraçados todos, meus companheiros de classe, ricos a viverem no Restelo, mas sem Rolls-Royce, a olharem, especados que nem parvos e alguns eram, a verem passar o carro da rainha e também do presidente do Concelho, em cerimónias oficiais.

A chegada à escola era triunfal, as empregadas sem saberem o que fazer, embasbacadas perante a majestade de uma viatura desse calibre, e mesmo sem passadeira vermelha, saíamos triunfantes, sem olhar para ninguém, sentindo-nos as pessoas mais importantes desse pequeno mundo num bairro, como outro qualquer, numa cidade acanhada e submissa.

Depois dessa experiência nunca mais fui o mesmo e percebi, mesmo que miúdo e imaturo, a dimensão do poder, o que a opulência rebaixa e mirra os outros, a vertigem da falsa sensação de controlo sobre as coisas e as pessoas, quando o dinheiro pode comprar quase tudo.

Nunca mais andei de Rolls-Royce, nem me apetece. Quanto à rua Soldados da Índia, já não tem miúdos na rua a jogarem as caricas, a macaca, a saltarem a corda, a jogarem a bola. Agora a  escola é mista, o jardim continua desarranjado alternadamente. Os Altos Estudos Militares talvez ainda tenham generais a fazerem jogos de estratégia e a comerem bem. Não se sabem porque eles estão barricados intramuros, guerreando-se uns aos outros pelas medalhas ao peito. 

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