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A mostrar mensagens de outubro, 2023

ROLLS-ROYCE

  Quem anda num Rolls-Royce, nunca mais é a mesma pessoa. Quem anda num Rolls-Royce em pequeno, nunca mais vai ser a pessoa que sonhou ser a não ser que ainda assim a queira ser, apesar do abalo sísmico de ter andado num Rolls-Royce. O bairro do Restelo em Lisboa, nos anos sessenta do século passado, antes da contaminação das embaixadas e das residências de indivíduos de duvidosa proveniência, cheios de dinheiro malcheiroso e desconfiável, era um bairro rico, mas pacato. Familiar, uma certa burguesia abastada lisboeta, que não era efusiva. Eram tempos em que se não dava nas vistas e quem tinha Rolls-Royce não andava por aí, a anunciar ao mundo, que o tinha. O ambiente do bairro acompanhava o ambiente tépido e dormente de uma capital muito pouco cosmopolita e de um império provinciano e humilde. Nada de particularmente interessante acontecia na cidade, a não ser as novelas das traições, dos adultérios, das misérias familiares humanas, sempre as mesmas, sempre repetidas, sempre m

AMOR INCONDICIONAL É UMA DOR DILACERANTE E TRISTE

    Nessa circunstância ausente de compreensão, sem qualificação apropriada, nessa desumanidade que é ainda mais ausente – se pode ser – da chama de simpatia do coração humano, algo que brota em jorros incontroláveis, umas trevas, algo com uma dimensão que só pode ser de outro mundo, diabólico, que não é possível entender, destaca-se um instantâneo de alguns escassos segundos, pouco mais do que uma imagem, com pouco movimento. Uma imagem, que passa diante dos nossos olhos, focados num ecrã, olhos frios, secos, que não lacrimejam, habituados a imagens violentas frequentes. É no chão de uma sala de hospital. As lajes desse chão  seriam brancas, não estivessem manchadas a vermelho. O olhar é, entre outras manifestações mais ou menos subtis e pessoais de amor incondicional de uma mãe ao seu filho, a cumplicidade mais forte. É no olhar mesmo que esquivo, de ambos, que se descodifica o código do amor. Não há outro olhar como esse. Nesse cenário infelizmente real, uma mulher ainda jov

Era a poliomielite

José andava paraliticamente coxo. Doença antiga, de criança. E tinha os dentes encavalitados. Os que recebem as pessoas com sorrisos. Por isso sorria pouco e falava com a boca entreaberta para quem observa, e meio-fechada, na sua avaliação e vista sob a sua perspectiva. José era o único menino do prédio que não ia para o pátio das traseiras brincar com os outros meninos. Talvez por ter esse andar bamboleante, ou por não poder emitir uma opinião sem que um oceano de perdigotos se soltasse rebelde, da sua boca que não tinha a culpa. Um azar nunca vem só. A ele tocaram-lhe pelo menos dois, o que não foi justo, mas enfim os homens não se devem meter nas coisas dos deuses nem emitir opiniões sobre assuntos e decisões celestiais. Foi uma pena que nunca tivesse brincado connosco. Fizemo-nos homens e uma barreira a separar-nos, nunca ganhámos intimidade. Passava os dias empoleirado no beiral da sua marquise que dava para o pátio, a ver-nos brincar. Como não podíamos usufruir da sua compa

A MÁQUINA DE TECLAR PENSAMENTOS

Temos em nós uma máquina que tecla os pensamentos. Como se fosse uma máquina de escrever, que não é mecânica nem um objecto. É uma máquina biológica, muito mais complexa, de tal forma que ainda não se sabe como ela tecla os pensamentos. Fruto da sua livre vontade, ou de uma intenção pessoal, esta máquina que estará pousada numa secretária dentro da nossa cabeça, não tem um segundo de descanso. Desde que se abriu o escritório com o iniciar de uma nova vida, ela, formiguinha incansável, tecla e tecla dia e noite, produzindo um número inatingível de palavras em sequências de frases, que dariam numa existência – o tempo que o escritório está a laborar – para dar várias voltas ao mundo, ou mesmo, estendidas em linha direita e recta, ou mesmo chegar à lua. A Máquina de teclar pensamentos produz ideias profundas e complexas, mas também tecla asneiras e impropérios. Sendo humana, tem muita tendência para o erro. Por vezes também encrava e fica a teclar na mesma tecla provocando grand

É UM SUPONHAMOS

  Uma vida a ver passar. Dias a seguir a noites, pessoas, meios de locomoção, dinheiro pelas mãos, oportunidades, sonhos, ilusões, dissabores. A ver passar tanto e tão rapidamente, sempre a ver passar, a julgar-me idiota, em ocasiões, porque só via passar. A não agarrar nada, nem com a vontade nem com os mãos. E todos a acenarem e eu na incerteza de que estariam a meter-se comigo, eles também a passar e a passarem por eles. Depois desse fluxo torrencial e fugidio, aceitei ser tutor de duas galinhas poedeiras, e usufrutuário de um pequeno terreno agrícola que tem no seu inventário três oliveiras, um limoeiro, uma laranjeira e o que julgo poder chamar-se uma clementineira , mas não arrisco certezas. E flores, abundantes e diversas, que até sermos devidamente apresentados, não lhes sei o nome. Hoje é o dia em que deixei de ver passar: consegui ser admitido no Jardim das Delícias. Passado então para o outro lado, vejo-vos agora a passar, no portão de entrada do meu novo jardim. Aceno