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Mensagens

A mostrar mensagens de maio, 2017

POESIA SEM PALAVRAS

Em dias como hoje, Não há nada para dizer. É a poesia sem palavras. E há quem diga da poesia, Que em dias como hoje Está a mais com palavras. Com um dia assim concordo, São redundantes, ambas. Só de sentir o calor na pele, pleno-me. E todo o meu reservatório de prazer, O intelectual e o do corpo Basta-se com o calor, sem poesia nem palavras, A súmula das duas.

GÉMEOS

Dois seres iguais, diferentes em pequenos acabamentos. Observadas com método científico, as diferenças, milhares, conseguem-se estabelecer. Faz-se um levantamento topográfico do que os desiguala. São tantas que se poderia dizer de tantas quantas as de outros dois seres que em nada se possa dizer que são iguais. No entanto, num primeiro olhar ou num olhar assíduo  num convívio amiudado, são sempre difíceis de distinguir, apesar de se poder dizer que alguma coisa de diferente têm, de tão parecidos que são. Qual o nome correcto a aplicar a cada um, sem engano, sem vacilar?  Neste ponto afloram equívocos, embaraçando quem pronuncia e quem recebe o nome trocado. Seria legitimo dizer que eles, de tão habituados ao engano, a afectação da troca do nome não afectaria nada. Mas não, é doloroso ser constantemente chamado pelo que não se é.  Um nome é uma identidade, errar na invocação é não reconhecer a impressão única de todos os que encheram de nomes próprios os assentos de n

DIPLOMACIA

A diplomacia é a disciplina prática da acção humana politicamente correcta, que mais danos colaterais causou em todas as recensões históricas da humanidade.

A HIPPIE, DE NOVO

No jardim que frequento desapareceram – não as vejo há mais de dois dias – as mulheres que leem livros, absortas. Deixaram de estar sentadas, pelo menos nos últimos dois dias a lerem livros alheadas das pessoas, como eu, que estão no jardim só para comentarem factos inabituais, como este. Elas podiam distrair-se mais saudavelmente só em olhando, por exemplo, para os melros,os pardais, outros de nome não conhecido,ou até os cães domésticos a cumprirem os seus curtos passeios higiénicos. Mas insistem em ler! A dizer isto, e uma das duas que leem, acaba de chegar. Em espírito de missão, faço uma inquirição discreta. Pago, levanto-me sorrateiramente da mesa da esplanada inflacionada e má - mas é uma esplanada concessionada num jardim, não podia ser boa. Finjo que vou inspecionar um insecto que só eu vi no "National Geographic" - que existe, inventando-o eu - no relvado por trás dela. Aproximo-me pelas costas e ela sem dar conta, todo o corpo concentra

ASCENSORES

São três a disputarem a pulcritude das ascensões às alturas, que para baixo todos e mais os santos ajudam. A subida é pouca, somo merenscórios (melancólicos, para dar oportunidade a palavras que ventaneiam pouco) e pequenos, obedientes à escala humana, inclusive nos altos e nos baixos. Seja como for, uns cem ou duzentos metros no altímetro, acerca ainda assim as pessoas do céu ridente e de um azul que os locais dizem ser só seu – se é isso o patriotismo, seja esse azul o mais belo de todos - a pintar esse espaço infindo, nesta cidade de Lisboa nos meridianos dos fins das Europas. Andam os três em disputa desde os finais do século dezanove , quase clubes de futebol, que depois de ter sido escrito duvida-se da escolha do exemplo que não é dos mais apropriados!    A sua missão nos tempos arcaicos – quando o  interior das carruagens se iluminava tenuamente com luz de velas, e o sistema de subida-descida se fazia por contrapesos em depósitos de água nas próprias carruagens -

ENSAIOS DE VERÃO

Quando alguém, não se sabe quem, abre as persianas dos telhados do planeta Terra e os raios de sol chegam com menos filtros, acalorando a sua superfície e todos os móveis e imóveis existentes; quando esses raios piscam e repiscam brilhos intensos e reflexões de luz, as pessoas mais sensitivas põem-se felizes e simplificam-se, saudando como podem e sabem e usufruindo, as energias promissoras. Acontece um retorno ao original, a um estado puro, acontece uma interrupção do tempo ou dá ideia disso. É um limbo, uma antecâmara de qualquer coisa boa. São assim os vislumbres dos dias de primavera que ensaiam ser verão, a porem as pessoas à prova, para ver se já estão preparadas para lidar com a canícula. É o anúncio com estilo dos tempos de glória, a rainha das estações do ano em que quase se consegue esquecer a melancolia com os pezinhos em molho de água fresca, massajados pelas águas dos mares calmos, a inaugurarem as primeiras aventuras balneares. Nos primeiros dias de s

UMA PELO MENOS ERA HIPPIE E LIA UM LIVRO

Ontem vi duas mulheres lendo, num jardim com esplanadas. A princípio desconfiei mas dei o benefício de perceber antes de lançar um anátema, que é pior que um perjúrio. Aparte a parte toda nas cadeiras das esplanadas e os bancos residentes dos jardins, as outras mulheres e os outros homens que preenchiam os lugares, sentados os seus corpos neles, não liam e nem sequer falavam. Faziam o que normalmente fazem todas as pessoas de bem: organizavam a sua vida, os contactos e o lazer,  com  auxiliados pelos seus telefones portáteis. Enquanto isto acontecia - o que não era nada de anormal porque só eu notei essa actividade subversiva de duas mulheres a lerem um livro em plena luz do dia - dos passantes e por sexo, os homens iam mais apressados do que as mulheres c om os semblantes densos, talvez a dizeren  preocupação ou responsabilidade.  Podiam ser médicos ou padres, ou somente financeiros.  Passavam também homens musculados com roupa justa a quererem parecer ai

ANJO

Barricado na minha janela, fechada, observo o mundo. O mundo é a rua que se apresenta diante mim, que a consigo ver desde o seu início, à esquerda, até o seu fim, à direita, porque é nesse sentido  - vá-se a saber - que fluem as pessoas e os carros que passam na rua que me consome o tempo dos dias. A minha rua é o mundo, é pequeno e previsível o meu mundo. Nela não acontece nada de especial, sempre as mesmas caras, praticamente; os carros identifico os que estacionam e não me interessam particularmente. Há crianças na minha rua que jogam futebol, são irritantemente barulhentas, porque estou para velho e tudo me irrita. Corro com elas quando posso e depois fico com remorsos porque já fui criança e gostava de jogar futebol na rua. Em frente da minha janela, mesmo do outro lado, há uma paragem de autocarro suburbano, que por ser suburbano passa muito espaçadamente, sem hora marcada, vazio de poucas pessoas, geralmente de cor, sentadas e inermes. Desistidas. Esta

GABINETE DAS CURIOSIDADES - CRÓNICA ÚLTIMA

Pintar é estar doente dos olhos. Fica bem que as histórias tenham um fim e sigam canonicamente as regras ditadas de as bem contar. Não há ninguém que não goste de um bom ou mau desfecho, tem é que haver um, para se seguir em frente e não ficar preso ao passado. Estar colado a ontem é desencorajador e se não se despega, aumentam-se atrasos irrecuperáveis, o tempo a passar, que voa, e não se regressar ao presente, que só assim se pode desejar o futuro. o Gabinete das curiosidades foi um tentativa volátil mas intencional de museu privado de objectos de vida. Não foi uma tentativa, foi um acontecimento e não termina porque os objectos se tenham desentendido - vivem há muito juntos -, têm naturalmente os seus enguiços, picos de irrazoabilidade, mas são uma família, por vezes italiana: muita gritaria mas amam-se todos. O Gabinete termina porque tudo tem um fim e este espaço vai ser um novo templo de finos manjares, sabores dos céus, na terra, borbulhantes, que mais tarde se anunc

VAMOS BRINCAR AS PALAVRAS

Não é boa a primeira impressão de uma parede ampla preenchida com livros, desde o chão de madeira corrida encerada até ao tecto de estuque com perfis brancos trabalhados. Da aparente inutilidade de um objecto ao conforto da sua companhia, por vezes corre uma vida, por vezes uma é pouco. Já conhecia os livros e iniciara uma modesta mas voluntariosa biblioteca com dois ou três fascículos de banda desenhada a preto no branco, do personagem Major Alvega, aviador português ao serviço de sua majestade na velha aliada Albion . É possível ter sido o meu primeiro herói, ele e Toto o cão caçador do meu avô, animal fidelíssimo com uma paciência búdica que encarnava a contragosto o papel de touro em lides improvisadas que eu fazia no quintal da nossa casa anterior a esta, onde nasci mas não cresci. A sala do Pedro tinha um oceano de livros e era de pôr a escassear o fôlego a um pechincho. Alguns livros cortam-nos a respiração, deixam-nos ofegantes, mas é prazer. Com sete ou o

ENCONTROS

Temos dos climas mais afáveis da vizinhança, mas ficamos em casa. Nem para abraçar os nossos correligionários nos damos ao trabalho – que seria prazer – de sair e visitá-los. Ficamos, e entricheirados. Semi corremos a cortina da janela e olhamos de soslaio para a rua. Observamos os corajosos que se aventuraram a passear num dia perfeitamente inofensivo, apesar de chover, que faz falta. Estamos a vê-los mas eles não sabem da nossa existência, vêem estores brancos. Não saímos à rua, mas o facto de termos montado guarda na janela como observatório do que se passa lá fora, é como se tivéssemos saído. Quando cai a noite vamos contar aos nossos, à volta da mesa, que somos corajosos e sabemos tudo o que se passou na rua, porque estivemos lá, no local próprio, fora. Ou seja, na fronteira marcada pelo vidro da janela,  vasculhando com o olhar mortiço o movimento, fora. Somos heróis  dos sonhos, ou da preguiça, ou de nada para além de uma vontade imensamente frouxa,

UMA ACÇÃO COM SENTIDO

É uma coisa minha, uma conversa a sós, íntima, que não quero anunciar aos ventos e às brisas. Não interessa anunciar. Sou só eu e ela, e faz-se a síntese do meu universo espiritual. E essa coisa privada, que se pode chamar fé, é um convívio pessoalíssimo. Nestas coisas, cada um com o seu interior. É desnecessário trocar impressões com os outros, a experiência é individual e intrínseca, forra-nos por dentro. No restolho das arenas do mundo, o que se diz que se vê, o que se monta, é um fogo-de-artifício, Nem sequer é cumplicidade com os outros, é alienação e uma velinha. Tropeço em Jesus todos os dias, temos queda um para o outro. A pedir nas ruas, a arrumar carros,  na pediatria oncológica e outros médicos e enfermeiras, a esbracejar porque o barco afundou mesmo à porta do paraíso. Nunca o vi de fato e gravata de seda a fumar charuto,  mas diz-se que as aparições são à medida de quem as vê. Alguém com certeza verá Jesus a fumar um be

ENCICLOPEDISTA

Gosto de manhãs de chuva, o som que ela faz, gosto que se prolongue tarde dentro. pacifica-me e molha. Limpa. É em dias de chuva que se vê a fibra dos homens. Os que se deprimem e queixam, os que molham as solas dos sapatos e palmilham. Para além de tudo isto a chuva purifica. Quando deixa de cair, põe os pássaros a cantar, as folhas das árvores abanam as suas asas, que são folhas, e reanimam a fotossíntese com mais vigor. Que esteja descrito em anuários ninguém sabe mais disto do que  Manoel de Barros. Escreveu em poesia uma enciclopédia da natureza. Conseguiu o feito de viver noventa e sete anos e morrer sem presunção. Hoje chove, Muitissimamente. Enquanto seco as solas dos sapatos, releio a sua ciência poética, com os pés secos em cima da mesa da sala. Atitude inapropriada mas cómoda. Faço-o sem culpa e nem sequer vou disfarçar se alguém entrar. Faço-o com todo o prazer na companhia do Manoel e est