Não é boa a primeira impressão de uma parede ampla preenchida
com livros, desde o chão de madeira corrida encerada até ao tecto de estuque
com perfis brancos trabalhados. Da aparente inutilidade de um objecto ao
conforto da sua companhia, por vezes corre uma vida, por vezes uma é pouco.
Já conhecia os livros e iniciara uma modesta mas voluntariosa
biblioteca com dois ou três fascículos de banda desenhada a preto no branco, do
personagem Major Alvega, aviador português ao serviço de sua majestade na velha
aliada Albion. É possível ter sido o
meu primeiro herói, ele e Toto o cão caçador do meu avô, animal fidelíssimo com
uma paciência búdica que encarnava a contragosto o papel de touro em lides
improvisadas que eu fazia no quintal da nossa casa anterior a esta, onde nasci
mas não cresci.
A sala do Pedro tinha um oceano de livros e era de pôr a
escassear o fôlego a um pechincho. Alguns livros cortam-nos a respiração,
deixam-nos ofegantes, mas é prazer.
Com sete ou oito anos mal sabidos de ler, parentes chegados nem
mesmo com sessenta o tinham ainda conseguido, e aqueles livros, tantos, a prometerem
mistérios inumeráveis. Alguns títulos anunciavam-se em luzes piscantes, sedutores,
a pedirem para serem resgatados das prateleiras.
Sabemos quanto a curiosidade é corrosiva e inferniza a
consciência, constantemente a sussurar,fazendo correntes de ar nas esquinas da
nossa cabeça, propondo imprudências, a pedir para entrar na intimidade de uma
qualquer coisa, um objecto, um espaço por explorar. É uma aragem que não
desiste.
A curiosidade e uma criança, quando dão as mãos, fazem uma
parceria perfeita, e normalmente estragos visíveis.
Quando ia lá a casa (que é uma maneira de dizer, para quem
passava fatias generosas do tempo dos dias lá em casa), e por algum motivo estacionava
momentaneamente sozinho na sala, esperando o meu amigo para entrarmos ao
serviço nos horários da brincadeira – uma das profissões mais difíceis e sérias
do mundo – o chamamento daqueles livros, uma espécie de coisa magnética, era um
fenómeno real, mas também podia ser um desarranjo temporário da minha cabeça.
Silêncio, livros e belos quadros pendurados nas paredes livres.
Eu gostava daquela união de facto, a ligação perfeita. Sem explicação credível
nem científica (e divina põem-se dúvidas), o tempo entrava em modo de pausa.
Num fogacho, a eternidade deixava de se passear – flausina - à
frente dos meus olhos. Era isso a ausência de tempo.
Como tive muitos episódios de solidão temporária enquanto
esperava o meu amigo, a curiosidade acabou por assumir o comando da mente e
ordenou às mãos – que são as suas cúmplices tontas – o caminho da biblioteca.
Resisti o que pude, como pude, mas às crianças tudo se perdoa, e eu não resisti
mais.
E houve o primeiro livro.
Tirei, penso agora que aleatoriamente, uma grande e pesada
enciclopédia a cores, com muitas fotografias e desenhos. O assunto eram os
jogos olímpicos da antiguidade grega e as modalidades desportivas que os
compunham. Sei hoje que estava escrito em francês, porque me ficaram gravadas
na memória palavras que mais tarde decifrei, quando o aprendi de raspão no
liceu.
Esse foi só o primeiro livro, mas voltei a ele muitas vezes. Fascinou-me,
fabricou-me sonhos, cumpriu o papel de livro.
A partir daí, explorei os que pude. Seria contornar a veracidade
deste testemunho, dizer que os folheei todos. Eram demasiados e alguns tinham
acontecimentos impossíveis para uma criança (nem em adolescente cheguei perto
de entender muitos deles).
Mas oficialmente dizendo, a aventura da exploração dos livros só
começou, quando distraídamente entrei para dentro de um, e o Pedro me apanhou
dentro dele quando entrou na sua sala de estar, e eu, um pirata de olho de
vidro fingido e uma perna verdadeira a fazer de pau, navegava num barco alheio,
acabado de capturar, completamente absorvido numa história que já nem me
lembro, mas era das boas.
Pedro fez-me uma entrevista, acerca dos livros, colocou
perguntas complicadas, respondi pouco porque entendia pouco de livros, só sabia
que gostava deles.
Mas dei-lhe confiança.
A partir desse dia e a termo incerto, ganhei autorização para
ajudante de bibliotecário e o Pedro sem que eu o soubesse, nem me dissesse,
decidiu-se a ensinar-me as palavras e as suas conjugações, já que sem elas e a
sua compreensão, não me servia de nada gostar simplesmente de livros, que são
jeitosos para se andar com eles debaixo do braço, mas ficam ridículos se não
forem devidamente lidos.
Ganhei um livre-trânsito para tirar a obra que me interessasse,
colocar no seu lugar na prateleira um marcador a sinalizar a falta e o usuário,
e devolver sem prazo estabelecido, nas mesmas condições com que tinha sido
retirada. Só não podia sublinhar nem escrever, a lápis que fosse, nas páginas
do livro. Se o quisesse não seria fácil, porque muitas margens das páginas dos
livros do Pedro, estavam já ocupadas, com comentários e notas suas. Havia mesmo
alguns que já eram dois livros num: a versão original e a revista e melhorada,
por ele.
Foi assim que iniciei o que julgo ter sido uma brilhante a admirável
carreira de explorador dos livros, uma actividade arejada, sem postos
fronteiriços, que ainda hoje pratico sem nenhuma moderação nem decoro.
Li tudo o que pude dessa biblioteca, a minha primeira biblioteca.
Pedagogia, psicologia, antropologia, sociologia, filosofia, política, outros
temas menos respeitáveis como poesia, teatro, literatura.
E fui crescendo com um professor que nunca o tendo sido em
representação do óbvio, foi encaminhando subtilmente o seu aluno para o portal
da compreensão das coisas, para a ginástica do pensar, para a alegria que dá
saber fazer uma boa pergunta, a exigir que se desvende o mistério de uma boa
resposta.
Ele adorava brincar com as palavras, e ensinou-me esse jogo, um mastermind, que praticámos vezes sem
conta, anos sem conta, no pingue-pongue duma dialéctica em privado, ele o
mestre, eu o discípulo, sempre a perder aos pontos, mas que importância isso
tinha, compensava o prazer que dava!
Nos serões de família, em que eu animado contava e recontava a
história do jacto súbito e inesperado de petróleo no quintal do meu avô, para
os lados de Xabregas, quando eles almoçavam pezinhos de coentrada, e o Pedro, a
meter pelo meio da história uma esparrela, sobre o Theilhard de Chardin - que
me tinha emprestado - a aferir da minha atenção ao assunto, dificílimo: à
esparrela e ao tema da reconciliação da ciência com Deus, o panteísmo cósmico, a
liberdade do homem, a ver se já entendia, se já estava maduro a entender, e se
assim fosse, estaria convenientemente preparado para questionar o mundo.
Foi uma relação filial, a minha, com ele, e devo dizer que
fiquei muito bem servido com o oferecimento da sua paternidade.
Sobre os livros não posso dizer mais nada: não consigo encontrar
um, abandonado, que não o adopte. Tenho assim centenas de filhos - ou talvez - centenas
de pais, e algures, num recanto onde se aviste uma bela paisagem de mar e
praia, lá estará o Pedro, a dar ordens de marcha aos livros, para que eu –
eternamente incauto - tropece neles e os leve para casa.
Ao meu pai-amigo PedroOnofre,
Foi bonita a festa pá, fiquei contente!
Comentários
Enviar um comentário