Gostei da alcofa pousada
na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava.
Gostei do colo da minha
avó.
Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.
Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros
não.
Gostei do silêncio da noite, gostei em geral
dos silêncios.
Gostei de ouvir num radio
a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons.
Gostei do cão Tôto, de
caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro.
Gostei daquela casa onde
só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a
minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos.
Gostei de odores que já
não identifico.
Gostei da tia Rosa, mulher
ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo
o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu.
Gostei do carro de
bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único.
Gostei do primeiro livro
de quadradinhos, contava aventuras de cowboys e índios passadas num sítio
distante. Preferia os índios.
Gostei tanto de andar de
eléctrico com o meu tio, de férias da guerra, com o seu bivaque à cabeça,
fascinado com o alicate do revisor dos bilhetes.
Gostei praticamente por
igual de cada uma mas diferentemente de todas as minhas tias. Eram irmãs da
minha avó, só podia gostar delas.
Nunca gostei de palhaços,
nem do circo. Gostei dos teatros.
Gostei das longas sestas
nos domingos quentes à sombra das árvores do Monsanto.
Gostei daquele pequeno
cemitério judeu, das suas lápides, das flores tantas, onde o meu avô jogava
silenciosamente cartas com o coveiro, seu amigo.
Gostei por igual de todas
as festas de Natal comemoradas em família. Eramos mais de vinte, na casa onde
hoje vivo e a vejo tão acanhada.
Gostei das histórias mirabolantes
que o meu tio Virgílio, homem sério, contava quando se animava.
Era bombeiro e nunca
apagou nenhum fogo. Pequeno ou grande.
Não gostei nada dele
quando nasceu, mas adoeci-me de o gostar tanto que nem tenho palavras que o
digam. O meu irmão.
Gostei de o ter conhecido,
no primeiro dia em fui ao pátio do prédio onde morávamos recentemente, e ele estava
perfeitamente senhor de si no carrinho a pedais, azul e magnífico. Louro, um Adónis em tamanho pequeno.
Fizemo-nos irmãos.
Vemo-nos tão pouco.
Gostei de todos os dias
eternos que brincamos livremente nesse pátio, uma algazarra de crianças a
crescerem para grandes.
Gostei do primeiro dia de
escola.
Gostei da mão da minha avó
que me levou até à porta, e todos os dias me esperava, com um sorriso que
considero ainda como o mais bem conseguido sorriso que alguma vez pude ver.
Gostei quando o meu pai me
ofereceu o primeiro relógio, eram a corda, por ter completado a primária. Senti-me
homem.
Nesse dia sem o saber, já
tinha completado mais estudos que quase toda a minha família. Tinha dez anos.
Apaixonei-me pela primeira
vez, descompensei o coração, pela minha professora de português.
Disse-lhe que seria
escritor. Não fui.
Fui domador de cães.
Fui escriturário.
Fui quase jornalista.
Fui vendedor de
comprimidos e remédios.
Fui muita coisa.
Mas não fui escritor.
Gostei do primeiro beijo
de amor, apesar de atabalhoado e fugidio.
A partir daí gostei de
quase todos os beijos.
Gostei daquele dia em
Abril e não deixo de pôr um cravo na lapela e sair à rua, cantando e
emocionando-me muito.
Gostei de me sentir
grande, a andar de eléctrico a caminho do liceu.
Não gostei do liceu, mas
gostei da motorizada que o meu pai me ofereceu quando completei o quinto ano.
A partir daí nunca mais
fui ao liceu.
Tudo em casa era amarelo:
a minha motorizada a pedais, o carro de família e uns sofás que tínhamos de veludo.
Gostei do sábado de manhã,
na feira da ladra, onde conhecei a Maria.
Casei seis meses depois e
separei-me cedo demais.
Gostei do fim de dia em
que me despedi da Catarina, da Isabel e do João, na estação de Santa Apolónia. Havia
uma fotografia desse momento.
Descuidei-me, que não devia, da minha afilhada.
O limite do meu mundo
levou-me ao pais basco.
Gostei do som da língua
castelhana.
Gostei das pessoas.
Gostei de um certo dia
onde numa praia basca assisti a um pôr de sol e percebi que qualquer canto e
recanto do mundo podem ser de uma beleza avassaladora.
Fiquei basco desde esse
dia e ainda o sou.
Gostei da generosidade sem
fim de alguém que me deu a mão e me ensinou a passear. Tinha esquecido e cada
vez que saía à rua perdia-me.
Gostei dos telefonemas
longínquos da minha avó que me faziam senti-la comigo e está.
Gostei de todos os animais
com que convivi, tenho uma ligação especial aos cães e alguns gatos de quem sou
amigo.
Gostei de um cão que me
amava incondicionalmente e cujo nome, em basco, significava o vento que passa
através das paredes. Passamos bons momentos.
Gostei do dia em que o
Paulo, o Gil e o José, me apareceram à porta de casa, com um bacalhau, couves e
um garrafão de vinho para comemorarmos o meu primeiro natal fora da família. Estava
a mil quilómetros do meu porto seguro.
Gostei daquela sensação
melancólica das saudades de Lisboa.
Gostei da sensação
melancólica que tenho de Algorta.
Gostei muito das gentes
desse país que viviam tempos difíceis de guerra fratricida.
José e Nieves, grandes
amigos. O que me ajudaram.
Gostei daquele bar onde
festejámos a vida julgando-nos imortais e eramos.
Gostei dos invernos com
neve intensa. Nunca tinha visto.
Não gostei de ter voltado.
Foi difícil adaptar-me. Acho
que não consegui.
Tenho tantas saudades
desse meu país.
Gostei de ter lido
Cristovam Pavia, tanto que me ia fazendo mal.
Gostei do Diário de Lisboa
e do suplemento das letras onde publiquei os meus primeiros textos. Era ingénuo.
Gostei do Alentejo onde
praticamente vivi por três anos.
A pureza e a simplicidade
da cal branca que reveste ricocheteando a luz intensa do sol, as casas e as
pessoas.
As raparigas alentejanas
eram carinhosas e picantes.
Sempre gostei da toponímia
e dos nomes dos lugares.
A palavra cartografia deve
ser a que mais usei de todas as que conheço.
Gostaria de ter sido
geografo. E escritor.
Gostei das noites
estouvadas nos bares do Bairro Alto.
Gostei de uma mulher que a
minha avó pouco antes de morrer, no hospital, me apresentou. Não lhe dei a
atenção que ela merecia. Tudo teria sido diferente.
E deite-te licença para entrar. Construímos o nosso castelo de cartas. sabes como são frágeis os castelos de cartas. O nosso aguentou-se bem. Realizámos a grande aventura de botar filhos.
Gostei de ser pai, a minha
realização mais conseguida.
Os filhos são o nosso
livre conduto para a eternidade.
Amo os nomes dos meus
filhos e emociono-me.
E tu, sê muito bem mais do que bem vinda. Damos voltas estonteantemente tranquilos nos passeios de mão dada banhando-nos com o sol que o futuro nos reserva.
Gosto muito de ti e tu
sabes.
O mais se verá.
Brilhante e de uma beleza emocional estonteante. Afinal ÉS escritor, Luís
ResponderEliminarAparentemente, o meu primeiro comentário não ficou. É pena porque o que nos sai à primeira, é normalemente mais sincero e expontâneo. Vou tentar reconstituir o que te deixei...mas já me apercebi que já não fica a mesma coisa. Mas enfim, aproveito para te deixar o que por vezes não dizemos nas nossas breves e loginquas partilhas.
ResponderEliminarGostei ...E gosto do que escreveste agora, como a maior parte do que escreves. Como gostei de ti desde que te conheci...e gosto...muito. Gosto do teu riso... quando conversamos...mas gosto tambem da tua seriedade...quando conversamos. És agora o unico a quem posso tudo dizer...e tudo ouvir. Do mais profundo...ao mais profano. Tudo. Desde sempre que te considerei logo que eras como alguem com quem eu já tinha convivido algo de importante...talvez em outras vivencias ou Karmas. Ao ponto de sentir que te devería oferecer e partilhar...o que de mais valioso tenho nesta vida, a minha primeira filha. Foi uma responsabilidade pesada...eu sei, muito pesada. Nós não nascemos a saber ser pais...e muito menos saber ser padrinhos. É que os padrinhos se aparentam com o mundo das fadas... São consagrados pelo Destino...e a maior parte das vezes vêm de um mundo ainda ancestral, espiritual e menos fisico. De qualquer forma, temos este laço...que nos une...e nos unirá.
Depois partiste, primeiro tu...depois eu. Distancias e silencios só interrompidos...talvez...por pensamentos e orações. Cada um de nós fez-se a outras vidas, encontros...pessoas...e até esposas...filhos...tudo. Mesmo eu...tive que manter distantes contactos fisicos com o que era do meu sangue. Como agora...
Mistérios universais que nos abrem sulcos nas emoções e sentimentos.
Até ao dia...felicíssimo...de surpresa...me ofereceste de comer e beber...neste centro da Europa...onde acolhido...me deixei ficar. Para mim era a certeza de uma amizade de sempre...segura...firme...e muito gostosa.
Hoje já estamos mais para o fim das nossas vidas...Fomos netos, filhos, irmãos, sobrinhos, companheiros e maridos, depois pais... e agora eu...e dentro em pouco tu tambem...somos avós. Circumnavegações não só fisicas mas tambem do Espirito e da Alma. Ao nivel dos sentimentos...Fica-me a certeza que és agora o melhor amigo que tenho...loginquamente, como quase tudo o que tenho na Vida. Por vezes sinto-me como um astronauta na Lua...em contacto com Houston...Hallo?...Bip...Estás aí?...Bip...Estou?...Bip...
Conversas parcas...mas que me mantêm vivo e disperto, antes de partir de novo para a Lua...outros planetas...e estrelas distantes.
Obrigado pela tua escrita...que neste Mundo Fisico, cada vez mais materialista... e cada vez mais mortífero... NOS MANTEM VIVOS.
...e é com leituras destas que os inícios dos dias têm mais sabor!
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