Na distância do tempo que leva a vida a
passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar
certezas.
Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido,
mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma
palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de
visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de
misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança,
abrindo gavetas e mexendo em prateleiras.
Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia,
pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para
mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,
depois a querer saber o que havia por
trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos
usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova
óbvia que a minha tia ficou canhota de olhar, já que este olho é uma mentira,
não olha para nada, mas eu nessa altura desconhecia esse facto, e porque
julgava que ele estava mesmo dentro do copo a olhar para mim, coibi-me de lhe
tocar.
Havia igualmente uma boneca espanhola com mantilha e peineta e um
luminescente vestido vermelho da cor mais comunista que se possa imaginar, que
a um comando nosso baixava o braço e ouvia-se o som das minúsculas castanholas
que tinha na mão. Ainda hoje me pergunto como uma espanhola, mesmo em boneca,
consegue tocar castanholas ao som de um comando de voz nosso, sem – que me tenha
apercebido – alguém a tocasse?
Era pois uma casa cheia de objectos pouco comuns e estou em crer, com
funções fora do esperado. Por que razão, nunca me explicaram, tinham os meus
tios aqueles objectos em casa: um cavalo-marinho póstumo, uma boneca possuída por
energias estranhas e um enorme olho de vidro verde-água do mar, imerso
alternadamente num copo de água, ou no receptáculo orbicular direito da minha
tia Florinda?
Não podiam eles ser como todas as pessoas normais e colecionarem bibelôs
e livro das Selecções do Reader’s Digest?
O que agora não consigo distinguir é se essa memória que agora aflora na
espuma das minhas recordações sem razão nem motivo explicável, foi o meu
primeiro contacto com esse ser alado dos oceanos, ou se foi quando fui ao
Aquário Vasco da Gama, onde vi esses seres magníficos, através de um óculo de
uma escotilha.
Na câmara lenta dos seus movimentos naturais, como a executarem passos
de alta escola equestre, tão lentos que mal se dava por não estarem imóveis,
seres de outro mundo, executando um bailado ou em rituais de enamoramento,
seres diáfanos.
É provável que tenha sido a minha tia, nesse dia de olho posto, e o meu
tio que tinha um nome francês, sabe-se lá por que razão, que depois do meu fascínio
primeiro pelo seu cavalo-marinho, me levaram ao museu, vê-los vivos e sem o
saberem, despertarem com isso a minha curiosidade pelas coisas embrulhadas nos
véus do mistério, voyeurismo que me acompanha de sempre.
Agora vejo muito menos cavalos-marinhos, quase já não os há, mas ainda
uma que outra vez tenho a sorte de apanhar uns olhos vidrados, e fico logo na
defensiva, não vá saltarem do copo de água.
São tão bonitos os cavalos marinhos...
ResponderEliminarOs olhos de vidro um bocadinho assustadores mas depois, no convívio, tornam-se menos (hoje já não os colocam acho...)
~CC~