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UMA NOITE DE FADOS

O meu pai nunca foi a Figueiró dos Vinhos, muito menos a aldeia Ana de Aviz, nem eu tinha ido. No fim do seu caminho, passava longas tardes, numa pequena sala, com auscultadores nos ouvidos. Ouvia fado. Não incomodava ninguém, nem a minha mãe, e por isso, por não a incomodar, ela amuava considerando que era uma desconsideração, estarem os dois em casa e cada na sua existência, herméticos um para o outro, como se a vida das pessoas não fosse assim, cada um balançando-se no seu ritmo.

Eu não compreendia nesse tempo o fado, mas compreendia o amor, talvez já um pouco demente, que ele tinha por uma canção, entranhada na alma e nos corpos das gentes de Lisboa, motivo das paixões mais violentas, e de desfechos trágicos, nos bairros mais pobres e decadentes. Era uma música que eu considerava melancolicamente triste, que me incomodava, sem saber explicar. Ainda não tinha chegado o meu tempo de gostar de fado.

Hoje, ele já não frequenta essa sala, que de resto já nem existe, desfez-se nas poeiras do tempo. A fotografia desse momento captada num instantâneo da minha memória, expõe a sépia a sua figura concentrada, de olhos fechados a ouvir o fado e a esboçar as palavras dos versos, sem som, que já só existe nessa fotografia impressa em mim, que se esbate todos os dias que passam e numa volta da clepsidra, cada vez mais ténue, se esfumará também em pó.

Eu estou agora na bela aldeia de Ana de Aviz rodeado de gente franca e convivial, no salão de festas, ouvindo alguns dos fados que o meu pai cantarolava - muito mal diga-se -, uma terapia sua de felicidade. E estou a gostar da sensação estranha de me encontrar num local que imaginava improvável para mim, mas onde de repente, me sinto em casa, nessa casa com uma sala onde o meu pai ouvia música e sonhava sonhos de velhice.

Os músicos e a fadista percorrem fados conhecidos que toda a gente canta e que eu também já entendo. Os trinados das guitarras são belos e tristes. A voz magoa, com a suave tristeza, que canta os versos pungentes, que fez o molde da nossa alma: povo simples, melancólico, saudoso de um passado inalcançável, porque o tempo, ao contrário do que diz a canção, uma vez posto em andamento, nunca mais anda para trás.

A aldeia da Ana de Aviz, diz ela que as outras não a ouvem, é a aldeia mais bonita deste país. E será, se concordarmos todos que as aldeias do nosso país são todas as mais belas, porque é a nossa terra mãe.

Bela noite de fados, e o meu pai, não arredou pé, sussurrando-me ao ouvido as letras que sabia de cor dos fados que a Joana cantou

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