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A CHARANGA DOS CAVALOS BRANCOS


Apesar do alcatrão e de ser atravessado por viadutos, era e é um descampado grande, antes com ervas ao acaso, hoje ordenado, a mesma sensação pessoal de abandono, de frieza. O largo de Algés. Nesses tempos as ribeiras comprometiam-se com o mar e transbordavam nas épocas de chuvas intensas, transformando o largo num lago com objectos flutuantes. Ainda hoje é assim. Desse largo partiam algumas carreiras de autocarros que ligavam Algés a Lisboa, eram verdes. Os revisores picavam os bilhetes de cartão com cores a identificar as zonas, com um alicate, peça fascinante e à excepção de furar, completamente inútil.

No campo do largo grande, ervas daninhas prosperavam, já foi dito. No calor intenso de alguns verões e levantando-se ventos, eclodiam pequenos incêndios, inofensivos porque não havia nada senão erva, mais ou menos rasteira para arder. Os miúdos do prédio amarelo, pousávamos os queixos de querubins, no bordo do muro que continha o pátio do prédio, onde vivíamos de manhã até à noite, e que dava para o descampado. Fascinados com o fogo e de depois com o trabalho dos bombeiros voluntários, sempre a serem chamados. Como gostavam de mostrar trabalho e eficácia, a sirene do quartel enrouquecia de repetir aos gritos e volumosos, o toque de chamada. Assim eramos avisados com antecedência e eles lá apareciam nos seus vagares, de fogos percebem eles.

Todos os meninos do prédio quisemos, a dada altura ser bombeiros. Não foi nenhum. As meninas não sabemos o que queriam ser. Não falávamos com elas. Eramos patetas. Também quisemos todos ser cavaleiros músicos da Guarda Nacional Republicana. Ninguém seguiu essa carreira. E continuámos sem saber o que as meninas queriam ser. Eramos muitos parvos.

Apareciam uma vez por semana, pode ser à quinta-feira, que é um dia redondo e não me lembro já do dia certo em que vinham. Parecia um fenómeno geológico, ajuste e fricção de placas tectónicas, mas nós não sabíamos nada disso porque ainda nem sequer sabíamos ler competentemente, quanto mais entender conceitos complexos de geologia. Começava por uma vibração no ar, um zumbido, como se várias colmeias unidas se aproximassem de nós. A seguir, um som abafado, contido, mas a querer libertar-se, grave, trompetas do fim do mundo. Faziam-se momentos de silêncio e logo recomeçava. O volume ia aumentando, o ribombar também e agora o chão tremia, apesar de não ser um movimento voluntário das placas. Grande sururu. E lá vinham eles, a galope, nos seus magníficos cavalos brancos descendo majestaticamente a Avenida Vasco da Gama, tocando as suas marchas marciais, uma orquestra inteira montada a cavalo. Chegados ao largo, começavam a treinar os movimentos e as coreografias, adaptando as músicas com os passos dos cavalos. Espectáculo deslumbrante. A figura que eu mais gostava, e queria ser quando fosse grande, era a dos tocadores dos grandes, enormes tambores, que desenfreadamente, nervosamente excitados, só com os pés presos aos estribos a manterem o equilíbrio e de mãos livres executando amplos movimentos com as baquetas, que, entretanto, rodopiavam, malabaristas que eles eram, produziam esses sons de trovoada tropical, em Algés, onde o clima era moderado e tépido como as pessoas da terra.

Por vezes um desses tambores maiores do que uma roda de autocarro da Carris, desprendia-se do cavalo e rolava pelas pernas dos outros camaradas da fanfarra, causando o caos e algumas quedas aparatosas. Era nesses momentos - os miúdos gostam de maldades – que vibrávamos ainda mais, gritando e empurrando-nos uns aos outros.

Quando acabava a sessão de ensaios e voltavam ao quartel, para os lados da Ajuda, o mundo normalizava e pegávamos nas peças soltas das brincadeiras anteriores, esquecendo-nos rapidamente da existência do largo com ou sem cavalos. Voltávamos a atirar a bola às meninas e ficávamos nervosos. Se elas não a devolviam, obrigávamos os mais atadinhos, subornados com um rebuçado ou um soldadinho da Airfix, a tentarem a sorte de a ir buscar. Lá iam. Neste mundo há sempre uma quantidade inesgotável de atados prontos para tudo.

Elas, impávidas e meninas senhoras de si, mal esboçavam olhares de fastio e continuavam nas suas coisas íntimas e suas.

Apesar disso, esse distanciamento era insustentável, chegou o dia em que não pudemos deixar de estar juntos, e ainda bem, senão ainda hoje estávamos sem ir buscar a bola. Nenhuma das meninas e dos meninos daquele pátio vieram no futuro a casar-se entre si. Melhor assim, ficámos amigos, relação que exige uma fidelidade sem peso, nem remorsos.

A Charanga lá vai, autocarros verdes é que já não. Dava tudo para ter um alicate desses.

 

 

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