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O SABOR DE UM BOLO HUMILDE

  


A minha mãe era pastelinhos de nata, galões clarinhos e um palmo e meio. Sempre para mais e nunca para menos. Espalmado, como uma língua. A minha mãe também foi sogra, mas não fez uma relação directa nem de concordância com esse bolo humilde, de padaria, com o seu significado popular, de “linguaruda”, “falar do que deve e não deve, “dar palpites e meter-se na vida conjugal dos filhos”, como por exemplo diminuir as noras e os genros, porque os nossos meninos são imaculados e virginais.

A “língua da sogra”, bolo, nunca teve grandes pretensões, pouco doce, com sabor realçado da canela que lhe dá a identidade, mais para o denso do que para o fofo, vendido nas padarias de bairro, já mal se encontra. Em tempos passados de eu ter sido criança, era uma recompensa de bom comportamento, e não havendo outras comparações a não ser com o bolo-rei mas esse era só uma vez por ano nas festas do Natal, a língua da sogra foi o meu bolo preferido, e mantive-me nessa ilusão até vir a conhecer e estudar a fundo toda a pastelaria fina e muito mais gulosa dos recheios e dos pozinhos e brilhantinas para encher os olhos.

Como a minha mãe era fiel aos seus princípios, e cumpridora (tinha diabetes e assumia-os e portanto a bem do seu cuidado alimentar, só comia mesmo e diariamente, um pastelinho de nata, dois ou três galões clarinhos e uma língua da sogra, de vez em quando, apesar de ser o menos calórico dos antecedentes), manteve a tradição desse bolo esquecido e simples, e quando na geração seguinte à dos filhos, ia fazer uma surpresa aos netos à saída da escola, não se esquecia de lhes levar a sua língua de sogra.

A minha mãe já deixou de ter problemas com a diabetes, e num recente jantar de família os meus filhos recordaram-se da língua de sogra e tivemos uma agradável conversa sobre coisas insignificantes, e outros momentos sem peso, que afinal, quando de novo emergem na espuma dos nossos dias futuros e os lembramos com simpatia, constroem o “quebra-cabeças” das coisas importantes em que cintila a felicidade intermitente da vida das pessoas. 

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