Há ainda a dizer, que era um pequeno bairro
de casas brancas, quase iguais, com pequenos jardins, alguns só com uma árvore,
de fruto, e os miúdos do bairro, encenando heróis ou perdedores, “assaltando”
os quintais alheios para colher uma peça que fosse, demonstrar a sua bravura e
sinais de coragem, ganhando pontos na hierarquia do grupo. Bem precisariam
dela, mais tarde, quando embarcaram para a guerra, defenderem o indefensável.
Arbustos desenham os muros, não é tempo de
jardins exuberantes e relvas caras, muitos menos piscinas, carentes de espaço e
de utilidade sociológica. Algés apresenta-se do outro lado de uma avenida ampla
que imita o rio que desagua à sua frente, quase a dar o último suspiro na linha
da praia, onde ao longe se adivinha, com esforço na visão, um minúsculo farol,
flutuando.
Saindo dessa foz, por um cordão umbilical,
que não se consegue cortar -filhos e pais e filhos, enrolados nele, sem
desembaraços à vista, que permita liberdade de movimentos e um respirar não
opressivo, a ter de se viver com ele -, materializa-se na forma de estrada
estreita, serpenteante, onde a carreira nº 50, faz o que pode para não se
desiludir com o trajecto. Até para ser autocarro é preciso sorte. Esse cordão de
pobreza estende-se até Pina Manique. Quilómetros labirínticos e incongruentes
de casas mal feitas de restos, a miséria do mundo aos olhos de todos.
Sobreviveu a regimes e revoluções, quase que se erradicaram, mas aqui e ali,
voltam a instalar-se.
Algés é a diversão: as esplanadas, os
restaurantes e marisqueiras, a livraria, as pastelarias gulosas, o clube de
glórias e tantos orgulhos.
O bairro das casas brancas, no entanto, é
uma ilha. Nas ruas quase desertas de carros, o silêncio é denso, cortado pelas
as fatias dos sons efémeros do amolador, do leiteiro que coloca as garrafas de
vidro cheias à porta das casas, do padeiro que faz o mesmo, dos moços de
recados das mercearias que ajeitam os colarinhos e as gravatas surradas, e com
um toque de cuspo nas mãos, acachapam os cabelos rebeldes e descuidados. Vão entregar
as compras às empregadas domésticas, as criadas – ainda não era um trato
ofensivo -, e assim se fazem promessas de encontros, no domingo que vem, no
jardim da Praça do Império, cravejada dos brasões do Império português e uma
fonte de repuxos coloridos fazendo reflexos e brilhos nas paredes sérias e
comedidas do Mosteiro dos Jerónimos.
No bairro das casas brancas, havia, e há,
uma escola primária. De um lado as meninas, do outro os meninos, separados por
paredes para não se verem. Essa separação alimentava a sensação estranha dos
ruídos naturais das crianças nas suas brincadeiras, que se ouviam, sem se verem
os rostos e os corpos que compunham esses sons, o que adensava o mistério e a
imaginação. Uns envergonhados, outros fantasiosos de mais.
Durante quatro anos, fiz o trajecto de
pouco mais de quinze minutos, nos dois sentidos, da minha casa em Algés (na
realidade, a rua onde vivíamos era cortada a meio: uma parte era Algés, outra
era Belém) para a Escola Primária nº 1 do Restelo. A minha avó, deu-me sempre a
mão, e assim posso dizer, que sendo ela analfabeta, nas mãos que demos nesse
milhar e tantos de dias, deixámos de ser dois e ficámos só um, e ela sem que o
soubesse, fez comigo o exame da quarta classe.
Uma pessoa a fazer frente a todas as
condições que não liberta a mão do outro, que a cola a cimento quando é para
ser assim, que a acaricia num afago doce quando é para libertar do peso do
mundo, que espera que a campainha de saída toque, despojada da importância do
tempo e sendo essa espera a tarefa mais importante da sua vida simples,
sorrindo por isso e feliz, merece um diploma.
E assim lhe ofereci o meu. Passamos com
distinção.
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