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Abril ou a impossibilidade da utopia


Falta só um ano, tão pouco, tanto, para este país anacrónico e tão incompreensível, completar cinquenta anos de um sonho de democracia. Um ano como se fosse mais cinquenta, e sempre tão longe, pelo que se conseguiu e erodiu, pelo que não se conseguiu e nem se tentou, pelo que se desbaratou e deitou ao lixo com estrondo, pelo que se aproveitou para benefício próprio e desconsideração ofensiva aos outros, porque fracos, ou porque são honestos, ou porque andam sonolentos e distantes.

No dia 31 de Março de 1974, um mês antes de um herói, cavaleiro-andante, selar definitivamente o quartel do Carmo numa manhã nublada de Abril, o ditador em funções do regime, foi insanamente aplaudido por 80.000 crentes ou tontos, situacionistas eram (estive presente e vi, era adolescente ainda, não sabia ainda se era tonto ou crente, ou desalinhado), num clássico de futebol na metrópole do Império, com narrativas branqueadas nos compêndios da História oficial.

Tudo “a Bem da Nação”, o seu povo submisso e o seu ditador paternalista. «Se te portares bem, dou-te um rebuçado.»

O povo pouco lutou – lutar é desconforto, é preciso sair do sofá - para uma mudança do regime. Fechou-se em casa a olhar para o ralo das portas, tentando adivinhar, de olho vesgo, quem eram os informadores do prédio, ou então, ele mesmo no papel de bufo, observando os movimentos duvidosos na escadaria obscura e pouco frequentada. Nem as baratas conseguiu pisar com as biqueiras dos sapatos de solas rotas. Alguma contestação que houve nessas décadas e noutros momentos passados, feita por poucos, foi diferenciada e de elites, muitas vezes acionada por interesses próprios. O povo, algum povo, apareceu por arrasto, como aconteceu na I Républica, mas cansou-se depressa (o episódio da candidatura de Humberto Delgado, nos anos 50, foi talvez o mais significativo na adesão das pessoas).

A “revolução de 74” foi o fruto, positivo ainda assim para esse povo que gosta de bater palmas aos ditadores, de um contencioso administrativo-financeiro, fardado de miliciano, resolvido na rua por alguns ânimos mais exaltados e assertivos, que deram a esse povo, cariado e franzino, a oportunidade de sonhar e dizer que era do contra, quando nunca teve a coragem de o demonstrar com convicção e empenho. E no pó dessa aragem débil desvaneceu-se o império, afinal construções amadoras efémeras na areia mole.

E veio o tempo da festa, e da euforia, e do reinício, todas as possibilidades de começo, e o tempo mais uma vez passou.

Os governos dos países são as suas instituições, mas as suas instituições são alimentadas de pessoas que são, em democracia, escolhidas pela massa, o colectivo anónimo, que só ganha uma existência real, uma identidade fugaz, no voto que regularmente deposita para eleger os que os vão governar. É uma confiança que se investe, esperando um retorno multiplicado. Após o momento em que deixam o voto na urna, os cidadãos voltam a ficar de mãos vazias, regressam à condição de anonimato, quase todos achando que fizeram o esforço necessário e suficiente e que podem voltar despreocupados para as pastagens verdes das suas ocupações, vícios, e consumos, que a democracia fica tratada e bem entregue aos novos eleitos, que são quase sempre os mesmos eleitos, um lugar cativo, sequestrado, uma ocupação com poucas entradas novas. Os Directores dos Recursos Humanos que fazem as entrevistas de admissão têm ordem para deixar entrar somente os que ganharam direitos de transmissão, feudais, colados a cuspo nos cartões de filiação partidária.

O “Sistema” – coisa abstracta e nebulosa, que nem se tem a certeza de que exista– foi pensado, desde o primeiro dia de “liberdade” (talvez seja o mesmo sistema anterior com mudanças de nomes e outras designações), para alimentar as corporações, as quintas, os clubes com quotas e rituais estranhos. O acesso ao poder político fica reservado ad aeternum, a dois partidos maioritários, que são mais parecidos do que diferentes. Nas eleições, “para a celebração da democracia”, os epítetos pomposos nos currículos dos candidatos, enaltecem e dão um ar sério, mas o povo meio desperto por ser domingo, mal  sabe em quem  vota, a “sociedade civil” tem dificuldade e barreiras para se formar em grupos de candidatura de cidadania, e não tem maturidade nem consistência de ideias, e é assim que os partidos a jogo, não mudam e a alternância, entre dois – e muito bem blindada -, é tão enfadonha e entediante, que seria patética, não fosse ela uma das causas da entropia do sistema, e a democracia para além de ser uma utopia, se ter tornado também uma quimera, e, as duas juntas, se antes já era uma impossibilidade, agora ficou uma extravagância só alcançável na cabeça de dementes e papalvos.

Os extremismos, é a verdade que custa ouvir e se assobia para o lado, crescem e minam pela prostituição, desleixo, exemplo, levados ao colo até à possibilidade de serem poder, de novo poder, pelos arregimentados do bipartidarismo autocrático e com tiques absolutistas, que tão mal estão a fazer ao país. Meia dúzia de mentiras muitas vezes repetidas e a levantar os papões do medo a juntar ao desleixo dos do alterne estabelecidos e anafados, é o suficiente para ficarmos à beira de um chicote anunciado, e das palavras a serem abafadas pela fita adesiva na boca, com o consequente retorno ao ponto de partida: a esse dia 31 de Março, a um jogo banal entre Sporting e Benfica.

Não há escrutínio sobre honra, idoneidade, adequação e competência, espírito de cidadania e serviço público. Assiste-se descaradamente à recompensa com novos cargos e posições, aos que cometeram as maiores incompetências, enganos propositados, governança maldosa, desvios, favorecimentos, e todo o tipo de patifarias mais ou menos dolosas, sempre no sentido unívoco de benefício próprio ou dos correligionários do grémio que está nesse momento no poder.

Não são todos, mas os que o são, são demasiado.

Podia ter sido diferente, mas não foi, porque se não quis e não se trabalhou e criaram disponibilidades e meios para se elevar a qualidade e a quantidade da matéria crítica, quantos mais melhor, para ganhar confiança em decisões e desafios mais responsáveis, bem pensados, bem planeados, bem escolhidos, bem executados, bem monitorizados, bem fiscalizados, bem concluídos, tendo como objectivo único e inalienável a obtenção de níveis de sucesso, a bem da comunidade e do progresso. O que só teria sido possível com um investimento na educação, no ensino, na cidadania, na comunidade. E currículos de estudo coerentes e úteis.

Mas podia não ter sido assim, não deveria ter sido assim. Então, por que razão ou razões é que foi assim? Tantas questões e tantas outras, algumas sabendo-se a resposta apesar de nunca ter sido dada, outras, mistérios insondáveis, e muitas tão incompreensíveis e desconcertantes.

São tantas as palavras que dilaceram, doem, corroem de tristeza e frustração: progresso social e material, educação, cultura, língua, saúde, justiça, habitação, protecção da infância, velhice, harmonia e ambiente, protecção civil, equanimidade, solidariedade, empatia, dignidade, respeito, verdade.

Facadas profundas, persistentes, desalento e desistência.

Haverá quem diga, até com alguma alteração na voz, que não se pode comparar; o que era e o que é: as condições de pobreza, a insalubridade do viver, a expressão do pensamento livre oprimido. Mas, também foi assim noutras geografias, na diversidade das adesões à União Europeia, e se vamos a comparar, veja-se onde esses países já vão (alguns tão pobres e oprimidos), em menos tempo, e a nossa imobilidade, estátuas melancólicas de gelo, a perder a forma derretendo na agonia das gotas que não solidificam mais. E os outros a passarem à frente, acenando adeus, com sorrisos cínicos, e com razão.

O que falhou? Nós? Todos? É da natureza intrínseca da genética colectiva? É da geografia? É do que se come? É do que se bebe a mais?

Até prova em contrário, algumas flores vão continuar a florescer no mês de Abril, mas deixaram de ser viçosas. A cor vai-se esbatendo e a palidez e maciez, sinais vincados de uma degenerescência galopante, tomam conta do espaço da fotografia panorâmica, onde uns sentados, outros de pé, todos fazem um sorriso mais ou menos de conveniência na fotografia obrigatória do dia.

De que serve celebrar um sonho rendilhado e esgaço, que se escapou das mãos insensíveis que não souberam moldar, frutificar, acariciar e proteger das intempéries?

Uma data, nada mais, a cair, cada vez menos sonante na amnésia do dia seguinte.

Para o ano, grandes comemorações e todos a puxarem a si os brilhos da democracia, com molhos de cravos nas lapelas, a esgaçarem de tanto peso. Todos capitães de Abril, mesmo os que nem sequer fizeram serviço militar. E o povo, a bater palmas, e tanto faz se são as marchas populares que descem a avenida se é a manifestação do 25 de Abril, é tudo parecido. Haja festa e saúde.

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