Avançar para o conteúdo principal

A QUINTA

Sentávamo-nos os dois e tínhamos longas conversas. Ou melhor, ele desenrolava memórias, como numa fita de celulóide a passar numa máquina de cinema antiga, contando-as pausadamente como relíquias orais que pouco se contam agora. Eu quase não me fazia notado, quase invisível, a ouvir com toda a atenção, para me recordar mais tarde, ficaria eu, algum dia, o fiel depositário desse tesouro e teria de as tratar bem e sabê-las de cor, para serem verosímeis na minha voz, mais não fosse contando-as para mim, ao adormecer, todas as noites, embalado por histórias de tempos e pessoas que deixaram de existir, como eu, um dia. Para que ele respirasse e acrescentasse drama e emoção ao que ia contar a seguir, mesmo que fosse só para acender um cigarro, fazia-lhe perguntas. Ele deixava-se levar, sabendo que com isso eu queria ganhar-lhe tempo, para me concentrar melhor e absorver todos os pormenores e detalhes.

Sentávamo-nos os dois na parte de trás da casa, que não precisava de estar tão bem pintada nem com os canteiros de flores alinhadas e vibrantes, porque era a parte de trás da casa, o nosso espaço íntimo, onde a cor era a pintura das conversas a dois, portanto abstracta, e as ramagens menos exuberantes mas belas na mesma, dos vegetais e tubérculos e outras espécies de famílias com nomes que eu não conhecia, nem distinguia, que davam vida e apetite e saúde ao nosso pequeno paraíso, a horta do meu avô.

Guardou ele essa nostalgia, a que chamamos amor da terra, o seu segredo e a sua missão, e sendo um indivíduo com sentido prático mas um grande sonhador, sério e fidedigno dos seus princípios, de poder um dia, voltar para o ponto de partida: já não o local onde nasceu, mas um local novo, seu, dos seus, com sabor ao campo que ele amava mais do que tudo. Privou-se de luxos para refazer esse sonho que tinha na cabeça.

E nesses dias, das conversas que tínhamos os dois, por ali ficávamos, passando as horas, não dando conta das luminosidades do céu, ele contando histórias e eu, entrando nos sonhos dele, eram sonhos dos dois,  imaginando animais que desconhecia existirem e só muito vagamente conseguia construir uma imagem deles na minha mente ainda pouco treinada, mas se ele os contava assim era porque existiam; dos cheiros exóticos das frutas que apesar de eu conhecer as maças e as peras e as uvas, como ele as contava não cheiravam nem sabiam ao que eu conhecia delas: eram outras maçãs e outras peras e outras uvas;  e os sons do silêncio que não conseguia ouvir na cidade e por isso desconhecia o silêncio, apesar de julgar que sim, mas afinal não, na cidade nunca se podem conhecer os hiatos dos sons do silêncio.

Poupou toda a vida para construir o seu paraíso, aquela pequena casa com uma lareira que terminava na linha do ângulo recto de duas paredes, da sala, ninguém viu uma lareira assim, na impossibilidade de se pôr um sofá, um cadeirão, cadeiras que fossem em frente dela, mas por alguma razão tínhamos uma, única; uma cozinha enorme e os quartos pequeníssimos, e a minha avó que mal sabia cozinhar, odiava a cozinha, essa e todas as outras que conhecia, mas como era inteligente e esperta enganava-nos sempre com os mesmo pratos, que de tanto os cozinhar, esses e só esses, os cozinhava bem, mas no restante, era um logro, ela não se importava nada com isso e no seu bibe de mulher velha, ria, e era bonita sempre.

Íamos aos fins-de-semana para essa casa e o meu avô só o víamos para as refeições ou então a contar-me essas histórias, que grande intimidade a nossa. Quando a minha avó faleceu, apesar de não se amarem há anos, se calhar nunca se amaram, foi uma pena desperdiçarem uma vida inteira sem terem amado – é possível que tenham amado outros, diferentes, que eu não soube - ele achou que apesar do amor que tinha pelas couves e pelos nabos, a sua horta, aquele espaço idílico tinha falta de vida. Já não se sentia bem ali.

Tinha razão, a minha avó que odiava cozinhar mas tinha o sorriso mais desarmado do mundo, era a vida daquele lugar, que afinal era mais dela do que dele e nosso, e só o descobrimos quando a ideia dessa casa com um quintal acanhado de horta, sem a sua presença, se fez num grande frio húmido que se entranha nos ossos e nos faz tremer sem parar. Ele dizia que lhe fazia “espécie” a casa de repente, de um dia para o outro ter ficado desconfortável e inóspita. Eu só vim a descobrir muito depois, agora, que me lembro destes episódios e os conto, à minha maneira.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

AI DO QUE GOSTEI E DO QUE GOSTO

  Gostei da alcofa pousada na marquise onde entrava o sol com abundância e a minha avó costurava. Gostei do colo da minha avó.   Gostei que me afagasse os lençóis ao deitar.   Gostei de alguns tons escuros, os das noites, outros não.   Gostei do silêncio da noite, gostei em geral dos silêncios. Gostei de ouvir num radio a pilhas músicas que me fizeram sonhar sonhos bons. Gostei do cão Tôto, de caça, onde cavalguei no pátio, a imaginar-me cavaleiro. Gostei daquela casa onde só me lembro do parapeito da janela, onde presumo que aos fins de dia eu e a minha avó víamos as pessoas a passar na rua e nós, abeirados do beiral as cumprimentávamos. Gostei de odores que já não identifico. Gostei da tia Rosa, mulher ainda mais pobre que nós a quem dávamos de comer e ela, em troca, me dava todo o seu amor porque nunca teve ninguém seu. Era eu. Gostei do carro de bombeiros que o meu avô me ofereceu. Tinha uma sirene. Era único. Gostei do primeiro livro de quadradinhos, contava

BERLINDES

Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi

COPOS E GAJAS BOAS, DE PREFERÊNCIA

De manhã se começa o dia, dizia a minha querida avó, mulher avisada, que vestia de preto, tinha um buço pronunciado e gostava da pinga às escondidas. Como quem sai aos seus, aos seus sai, já enfiei dois medronhos, para dar energia a enfrentar o dia que dá trabalho, e até chegar ao fim, é uma peregrinação quase religiosa ao botequim do chico. Pelo menos tenho fé em ir lá, é uma espécie de purificação do meu interior. Agora só bebo sininhos, estou em dieta alcoólica, só pequenas quantidades (de cada vez claro). Não se pode dizer que saia caro. Cada sininho são 30 cêntimos. Um copo de três, cinquenta cêntimos. Apesar de alguém desavisado poder estar em desacordo (está longe, não vê, está mal informado), sou uma pessoa poupada: só bebo um de cada vez. Se descontar de todos os que bebo, as ofertas, os brindes às efemérides de cada parceiro que frequenta o botequim, e os que o Chico se esquece de cobrar, gasto realmente muito pouco. Sou portanto no Sul, um dos homens mai

CAVALO-MARINHO

  Na distância do tempo que leva a vida a passar, as imagens mais antigas confundem-se, fundem-se mesmo, é difícil apurar certezas. Vejo-me a olhar fascinado e miúdo, a primeira vez, um cavalo-marinho. Ressequido, mas conservado, pousado na palma da minha mão. Se na altura conhecesse uma palavra mais pomposa do que renda, diria filigrana. Aconteceu quando estava de visita a uma casa liliputiana, de tios meus. A meu ver uma casa cheia de misteriosos e pequenos tesouros, que ia descobrindo na curiosidade de criança, abrindo gavetas e mexendo em prateleiras. Uma casa que tinha um olho de vidro da vista direita da minha tia, pousado no fundo de um copo cheio de água na mesa de cabeceira, a olhar para mim com um olhar espantado, esgazeado, e eu a olhar para ele, a princípio receoso,  depois a querer saber o que havia por trás de um olho, já que os vemos sempre colocados nas órbitras dos usufrutuários e não sabemos o que está por trás. Este olho de vidro é a prova óbvia que a minha tia ficou

DO AMOR INCONDICIONAL - 1-DO PODER

Nesta pluralidade que é a natureza, nesta obra dos acasos ou de causas superiores insondáveis, há seres cuja beleza cativa o mundo. A beleza é o argumento mais forte do poder. Dança à sua volta, danças do ventre, sensuais, húmidas, viciantes. Sabe rodeá-lo e tecer a sua teia invisível mas inquebrável, ata-o de mãos e pés, imobiliza, inteiramente hipnotizado. Perante a força irracional que irrompe de uma obra sinfónica, para pôr um exemplo de beleza superior, o homem baixa as defesas, entrega a sua sorte no embalo da música, extasiando-se é levado por essa torrente de emoções. Os efeitos dessa mistura explosiva, do casamento da beleza com o poder leva os seres a atitudes que não se alcança imaginar, coisas fora da lógica. Práticas do bem e o mal, sem noção, do bem e do mal, coisa subjectiva que leva por vezes a equilíbrios no fio da navalha. O aparecimento fugaz de um tigre listrado, meio visto, meio escondido no restolho dos arbustos, hipnotiza quem o vê e olha,