Naqueles tempos, que podiam ter sido outros, outros finais de história,
conjugação de factores e foram assim, dava-se muita atenção à apresentação das
pessoas. Hoje também, mas é diferente, andam muitos a aparentar o que não são,
endividando-se com vestimentas e objectos exteriores de riqueza, ou então, nos
extremos, revestidos com excentricidades tribais. A normalização, pelo
rasteiro, tomou conta de tudo.
Naqueles tempos que os digo meus, porque foram os que presenciei e tive
um pequeníssimo papel como figurante, na cena que representei no palco com
alguns milhares de milhões de homens e mulheres que estavam vivos nessa altura,
uma pessoa, andando numa rua de uma cidade qualquer identificava facilmente o
patamar social de um transeunte com que se cruzasse. Adivinhava-lhe de imediato
o seu estrato, e mesmo havendo, que sempre os houve, fura-vidas, com um olhar
mais detalhado logo se encontraria um pormenor, um descuido, que denunciava a
fraude. Até deslocando-nos de uma cidade grande para uma cidade de província,
se percebia bem que a mesma hierarquia social, tinha nas cidades pequenas de
interior, formas ligeiramente diferentes de se apresentar em fazendo comparação
com espécimes do mesmo nível moradores na capital. O corte dos fatos de homem
denunciava mais antiguidade, as gravatas eram mais mortiças e desproporcionadas,
o sapatinho, esse, o grande sinal da categoria e bom gosto de um homem, já não
se via nas montras das sapatarias finas da grande cidade, só nas vilórias sem
nome a que se desse atenção.
Mesmo dentro da mesma classe, havia subclasses. Naqueles tempos meus, não
chocaria muito a palavra castas (se bem noutras geografias este conceito tenha
também associado em si a dimensão do religioso), já que as relações e a
comunicação entre classes era muito motivada pelos interesses de poder, de
riqueza, de ordem profissional, qualquer outra razão de aproveitamento, de
acatamento e baixar cabeça, de servilismo, de escravatura disfarçada. E nem
vamos derivar para as raças – que há só uma – porque aí, entraríamos numa
cosmovisão de raça pura e de outros seres humanos que pela cor de pele e outras
características morfológicas e estruturais eram simplesmente considerados a
meio caminho entre humanos e os primatas, primos mais chegados, vamos.
Dando outro exemplo, no caso das mulheres burguesas e porque elas não
eram todas burguesas com as mesmas posses, distinguiam-se bem pela alimária que
forrava involuntariamente – já que não foi vontade sua ceder a pele, escalpado,
para um casaco - os casacos de pele que usavam.
Começamos pelo coelho, coitado deste animal, fazem-lhe tudo e mais
alguma coisa e nunca fica em destaque em lugar nenhum: não é a melhor carne,
não é a melhor pele, interage pouco connosco, era ao que chegavam os
baixíssimos burgueses e muitas vezes a prestações; a seguir, a raposa ibérica,
um bocadinho melhor cotada, ainda assim, rafeirita; subindo de nível, para
burguesias ascendentes ou tradicionais que tinham uma colecção diversificada de
peles e abrigos, a zibelina, a marta, o vison; no topo da montanha, em alturas
em que até já falta o ar e muitas vezes é bem preciso para se respirar
convenientemente e oxigenar os lóbulos e o neocórtex e pensar limpo e bem, a
chinchila, a vicunha, o arminho e o sable, iguarias quase inacessíveis aos
comuns dos mortais. Eram o caviar dos casacos.
Depois disso, ou ainda pondo em cima isso, vinha o preconceito, uma
espécie de código de moral e boa conduta, seboso, que se pegava à pele e não se
desentranhava, que ditava a sobranceria, a arrogância, o desprezo, a omissão, a
pena, a compaixão.
Naqueles tempos, inteiramente meus, ainda bem que já se esfumaram no
relógio do tempo, levando consigo os casacos de peles naturais e a patina de
alguns preconceitos. Por isso agora, apesar das circunstâncias menos boas,
menos más, as assim-assim, que as têm todas as épocas em estilos e feitios e
comportamentos, anda-se melhor na rua, apesar de ser mais difícil distinguir a
olho nu, um político com subsidio de deslocação que não pica presenças nas
sessões mas que picam por ele; um vilão, nomeadamente da banca e actividades
afins, que procriam muitas figuras destas; um lambe-botas e um imbecil, categorias
estas, que são transversais ao sistema de castas, há-os por todo o lado.
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