Uma ambulância, postal. Não uma ambulância naquele sentido de serem anunciadoras de uma urgência, com luzes piscantes, sirenes agudas. Chamava-se assim mas não se sabe porque se chamava assim. A ambulância era uma carruagem de comboio, a última, contando desde a primeira, da locomotiva no sentido da retaguarda. O espaço interior dessa carruagem estava dividido em duas áreas: metade, uma espécie de armazém, a outra metade, um escritório. Nem isso, uma imitação de uma loja de correios. Neste caso, ambulante. A metade escritório estava forrada de prateleiras quadriculadas, com nomes de localidades, escritos à mão. Não havia códigos postais, só localidades. Uma bancada de madeira corria a toda a extensão dessa metade escritório da carruagem. Em fila, carimbos alinhados por uma ordem emanada dos correios que desconhecemos agora. Também selos metálicos, em relevo, para lacrar, a fazer prova de inviolabilidade dos documentos.
O meu avô Mário trabalhou nas ambulâncias postais e reformou-se ainda jovem. Há uma tradição na família de nos reformarmos cedo. Uns encostam-se as paredes e assobiam, só fazem isso. Outros arranjam novas ocupações, algumas estapafúrdias, mas são assim: está na sua natureza. Os encostados e os nervosos têm ambos razão e nós, os que estamos de fora a vê-los, não tomamos partido, animamos todos, sabendo que nos vamosreformar cedo e depois logo escolhemos em que lado queremos ficar.
Ele, o meu avô Mário que nunca usou bigode o que muito me estranhou por
ser dos poucos daquela época sem bigode, fazia a linha de Badajoz. Um dia para
lá, um dia para cá. Naquele tempo não havia comboios de alta velocidade. Nem alta,
nem baixa: paravam praticamente em todas as estações e apeadeiros. Não sendo
assim, como podiam entregar e recolher o correio? As encomendas? A diferença
entre uma estação e um apeadeiro estava em que nas primeiras paravam mesmo o
comboio, e nas outras, só abrandavam, atirando porta fora da carruagem os sacos
de serapilheira com o carimbo vermelho de um cavaleiro com corneta montado num
cavalo galopante. Isto na viagem de ida. Na de volta, paravam para recolher a
correspondência. Caso contrário, só os destinatários receberiam a
correspondência, e os remetentes não, o que, somando dia, descontando dia,
acabaria com esse serviço, ficaria redundante, já que os remetentes fartos de
serem considerados destinatários, desistiam de ser remetentes, o que numa não despicienda
análise, acabaria com os serviços de comunicação escrita.
Foi um tempo da guerra civil de Espanha e o meu avô, achando que a sua missão de distribuir cartas de amor e de ódio, não era missão de nobreza suficiente, abriu uma linha humanitária: para a Espanha meias de vidro, sutiãs e batom, para Portugal, caramelos, castanholas e bonecas sevilhanas com peinetas e vestidos vermelhos fogosos com bolas pretas. Fez bem, acrescentou uma nova utilidade à sua deslocação diária, para além de só andar a distribui cartas, a maioria delas desinteressantes e cheias de lugares-comuns e equívocos.
Ganhou umas
coroas extra, conheceu algumas moças espanholas e deu-lhes apoio moral e
psicologia positiva de auto-ajuda, o que lhe ficou bem, e o meu tio e padrinho que
era na altura o seu único filho registado e oficial (contou-me ele), agradeceu
bastante aquela profissão de risco do seu pai, seu herói, adocicado pelo
caramelo, se bem se colasse bastante aos dentes, e não negou -porque lhe
perguntei mais tarde - que se divertiu uma que outra vez com as castanholas das
bonecas das peinetas e que tentou descobrir sem êxito e esclarecimento, o que
escondia aquele vestido de folhos que ia até aos tornozelos, não ficando clara a
anatomia das bonecas, mas também, ainda não tinha idade nem discernimento para
isso.
Agora, já não há ambulâncias-postais, mas também já não se usam meias de
vidro.
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