Até tempos recentes, as cegonhas traziam equilibradas nos seus longos
bicos as grandes obras dos homens, seus maiores tesouros, e entregavam-nos em
todas as partes do mundo segundo planos e organização logística que
desconhecemos, mas muito bem organizadas. Não interessa para a história o hiato
temporal em que as mulheres grávidas e com grandes barrigas, aparecem de um momento
para outro livres delas, lisinhas, que é o preciso instante, em que a cegonha, bica-lhes
à porta com um recém-nascido adormecido e agradado, pelo balancear pendurado no
bico, durante o voo que o trouxe pela primeira vez a casa.
As cegonhas deixaram de fazer este serviço, há demasiados aviões que não
lhes ligam nem a ninguém e são senhores do espaço aéreo. Elas atrapalham-se e
sendo um trabalho de responsabilidade não arriscam entregar a mercadoria com
defeitos, pelas alterações constantes de altitude e velocidade, a fugirem dos
aviões, correndo mesmo o risco de deixá-la cair no abismo das alturas.
É por essa razão que as crianças de hoje quando alguma, mais curiosa ou
dando indícios de vir a ser intelectual, questiona a mãe sobre a sua proveniência,
não sabem que eram as cegonhas que as entregava. Umas mães fingem que não ouvem
e não respondem, outras, mais modernas, explicam com todos os pormenores, como
se estivessem a falar com adultos, outras ainda, põem-lhes um ecrã nas mãos com
um jogo para se entreterem e não incomodarem.
Tive a sorte de ser transportado por uma cegonha e por isso fui um rapaz
saudável, consegui chegar a adulto com poucas feridas e cicatrizes e vou
resolvendo os desalentos e as pequenas derrotas, com espírito lutador, contando
estar por cá o máximo que puder, enquanto for curioso e gostar de observar.
Por esse motivo as cegonhas estão a deixar de serem úteis e nalguns
locais do planeta desanimaram por terem perdido a sua função no mundo. Entraram
em vias de extinção.
Como em todas as espécies, há bonitas e feias e pelo meio as mais ou
menos, e assim também acontece com as cegonhas: nem todas são brancas, esguias
e sensuais, há primas suas que são desajustadas, com silhuetas rudes, cores
baças e desarmoniosas. É o caso das que habitam o norte da Índia, onde existe
uma brigada de mulheres protectoras das cegonhas e dos seus habitats. Só
mulheres, só elas sabem cuidar e proteger, admiravelmente, completamente. As
mães. Andam de aldeia em aldeia e fazem-se anunciar com um longo chapéu feito de
pasta de papel pintada com a forma da cabeça de uma cegonha. Cantam e falam,
educando as mulheres dessas aldeias para convencerem os seus maridos a não
destruírem as terras húmidas, morada privilegiada de muitas espécies animais, infertilizando-as
com as agriculturas intensivas, a criação de gado para alimentação humana, ou
simples desleixo.
Pode-se ser que o rumo das coisas mude, como tantas vezes e
inesperadamente acontece, e as cegonhas venham de novo com sucesso a exercer a
sua profissão de transportadoras universalmente reconhecidas de bebés, e as
crianças dos dias de futuros, reconheçam, quando olharem para o céu e elas a
passar voando elegantemente com embrulhos no bico longo, que aí vão mais umas
quantas, entregar aos afortunados desta grande tômbola da sorte, o seu presente
de eternidade.
Todos são valiosos, é a sua diversidade que imprime a frescura do
existir, mas por vezes, tantas, o homem julga-se o único indispensável, e
julga-se mal, senão veja-se como estamos hoje: as cegonhas já não entregam os
bebés.
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