O meu avô, apesar de respeitar a natureza, os animais, as plantas e a harmonia de todos, era caçador. Era um homem do campo e por isso era caçador. Veio e completou-se homem na cidade, mas o chamamento, quando se manifesta é mais forte do que a sua negação. Como não podia ter uma horta dentro de uma casa exígua, passou a ser caçador aos fim-de-semana. Os caçadores têm um cão, ou mais do que um, até têm furões, parece que ilegalmente. Ele tinha um cão, amarrado na varanda do apartamento e só ganhava a sua liberdade de cão aos domingos quando ia caçar com o meu avô. Rapava o tacho do tempo, e corria, corria desalmadamente, como se fosse a sua derradeira corrida e havendo que aproveitar essa sensação de leveza e poder, corria até mais não. Umas vezes acertava na direcção onde tinham caído as peças abatidas pelo meu avô, outras ia em sentido contrário, pouco lhe importava, e o meu avô, de um cão preso numa varanda toda a semana, não podia esperar mais, nisso era complacente. Nunca lhe ouvi dizer mal do cão.
Agora que me lembro disso e que tenho um cão a quem trato como um igual companheiro, custa-me perceber que o meu avô, amante da natureza e homem sensato e justo, tenha tido um cão amarrado a uma corrente. Fazia-lhe festas quando chegava a casa, mas era um cão preso ao seu destino, e que me custa dizê-lo, o meu avô era o seu carrasco.
Se fosse hoje e ele estivesse vivo e quanto eu queria que ele estivesse vivo, e convido-o e ele não está, não teria um cão amarrado e não seria caçador. Continuaria a ser um amante da natureza, passearia o seu cão e eu com ele e o meu juntos passearíamos tanto, e apesar de não estar amarrado e dormir anafado e lorde a todo o comprimento do sofá da sala do meu avô, correria excentricamente e hippie porque era da sua natureza correr desabrido até gastar o folego.
Como já não estamos juntos, perdoo-lhe ter amarrado o cão. Era um homem do seu tempo.
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