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O MEU AVÕ FOI UM FUNCIONÁRIO EXEMPLAR NA FÁBRICA PORTUGAL E COLÓNIAS

 


As meias desirmanadas e as tampas de tupperware perdidas são grandes mistérios do universo. Ah, e porque escolhemos sempre a pior fila num supermercado para pagar?

A verdade é que do início até ao fim da nossa aventura existencial acumulamos interrogações e dúvidas e são muito mais as incógnitas do que as coisas conhecidas. Os filósofos e os matemáticos podiam ajudar mas nenhum se dedicou à epistemologia das meias e das tampas. Assuntos tão profundos e importantes como outros de menor escala com que alguns pensadores desperdiçaram a vida e os neurónios.


O meu avô paterno, homem rotundo, era um marialva. Não era nascido de família distinta, não era bom cavaleiro, não se ocupava de cavalos nem touros, mas levou uma vida ociosa e dissoluta e foi o que podemos chamar de mulherengo.  Era mesmo aquele tipo de pessoa que chega a irritar os que o rodeiam pela total despreocupação e gozo com que levava a vida, compensado em nós a parte madrasta desta tragicomédia, que não tínhamos culpa e gostávamos de ser desprendidos como ele. Achava piada a tudo, brincava com tudo, não havia coisas sérias. 


Por ser assim nunca teve problemas com as meias desirmanadas, porque a minha avó existia para o servir em tudo, até em aperaltá-lo para as saídas noturnas frequentes. Era ela que se preocupava com as meias desirmanadas. As tampas dos tupperware não foram um problema porque ainda não existiam neste lado meridional do oceano. Com as panelas este problema não se põe, não se fala de tampas de panelas desirmanadas. Quanto à fila de pagamento do supermercado, porque não os havia, eram as mercearias de bairro, e o senhor Xico, comerciante a quem defraudei lucros surripiando rebuçados e bombons sempre que lá ia fazer um recado, era amigo e companheiro das tertúlias e touradas do meu avô. Em nome dessa amizade, o meu avô esquecia-se frequentemente das contabilidades do “deve” no calhamaço dos adiantados, e o merceeiro, boa pessoa e amigo do amigo, tinha uma grande paciência e não o lembrava dos pagamentos em atraso.O meu avô era um folião, vivia para a paródia.


É sabido que Deus dá mais a uns que a outros, não há volta a dar, tem as suas preferências. A ele deu-lhe o lugar de encarregado de uma linha de montagem, só com mulheres, na fábrica Portugal e Colónias, e o meu avô, agradecido, contribuiu eficazmente para procriação e aumento da população residente, dando ao mundo mais cristãos para divulgar a palavra do Senhor e os evangelhos do seu Filho sofrido. Era o que se  dizia, apesar de só se lhe conhecer um bastardo oficial da minha avó, mas todos falavam nos miúdos, roliços e de orelhas de abanico que havia no bairro: eram a cara chapada do original. Como seria de esperar, apesar de absolutamente irresponsável, as crianças adoravam-no, e fica sabido que as mulheres também.


Quem tinha grandes problemas com as meias era a minha avó que também se viu obrigada a conviver uma vida inteira com as panelas.Para se vingar, pensava ela que seria uma declaração de princípios, durante décadas só cozinhou pouco mais do que arroz de tomate com peixe frito, e para mal do seu pecado, que se virou contra ela, tanto repetiu esse prato que se tornou exímia: era o melhor arroz do bairro. Como não conseguiu chamar a atenção com essa particularidade um tanto ao quanto bizarra, um dia deixou de frequentar a cozinha. A nossa sorte foi que abriu uma loja de venda de comida feita na hora e, a partir desse dia, começamos a comer arroz de tomate e peixe frito de confecção externa. Subimos de nível e libertámos a avó da sua frustração acumulada.

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