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MÓVEL PHILIPS

 


O meu pai, que trabalhava nas altas tecnologias do som e da imagem, a Philips, mas trabalhava pouco porque o que mais queria era divertir-se e fazer teatro amador, recheava-nos a casa com tudo o que havia de mais sofisticado: rádios-transistores de sensibilidade fina; televisores a preto e branco, no entanto panorâmicos e quase, quase a ver-se uma corzinha; utensílios de cozinha a darem com a minha mãe em doida, que mal sabia fritar um ovo e fazia questão ontológica de sublinhar essa sua posição, e um móvel tudo em um.

Por ser o possuidor desse móvel tecnológico fui durante algum tempo o rapaz mais influente de todo o bairro do Restelo e asseguro que mereci e recebi deferências e estiquei-as o que pude, já que sempre soube que as oportunidades são poucas, aleatórias, e quando nos caem à frente de se esticar a mão e apanhar, ou estamos de olho aberto e aproveitamos, ou então, até que outra nos aconteça pode levar ciclos astrológicos e esses as vezes parecem intermináveis, e mal se sai de um ainda sem tempo para  um alívio vem logo um novo, que vai acabar sabe-se lá quando.


Era um magnífico móvel de madeira, que ficava bem em qualquer sala deste país, e tinha tudo. Levantava-se a tampa e tinha um gira-discos, um aparelho de radio com um botão de toque suave para percorrer toda a faixa e apanhar o que se queria, e um leitor-gravador de cassetes, sendo que se podiam gravar sequências de slow e ir-se para uma festa de garagem com a certeza de que, em havendo parceira, esse prazer imenso de dançar cheios de emoção e tacto podia acontecer sem interrupções, para alegria de todos os interessados.

Em baixo, um painel frontal que se abria para uma área para pôr garrafas (esta conjugação de entretenimento a ligar a música com a bebida, era de uma grande subtileza e estava muito bem pensada. Os holandeses estavam muito à frente).


No dia 25 de Abril de 1974 os meus pais, o meu irmão, e o meu irmão Marcos, não de sangue mas de escolha mútua e amor, passámos o dia debruçados sobre esse magnífico móvel, recebendo notícias e fazendo os pontos de situação. Intercalámos a radio com discos do Chico Buarque, do Zeca e doutros amigos. O mau pai que era demasiado sentimental ou então estava sempre a treinar para os seus teatros, chorou como se não houvesse amanhã, e despejou-nos frases motivacionais e de ânimo sobre o futuro. A minha mãe teve que fingir que ia à cozinha supervisionar o almoço mal cozinhado pela moça que tinha tido o azar – em tantos patrões possíveis na roleta da sorte – de vir da terra para calhar connosco. O meu irmão hiperactivo mas ainda não havia ritalina, a querer mexer nos botões todos e sempre a dessintonizar o radio, e eu e o Marcos, iridescentes de alegria e excitação porque tinha valido a pena e o risco, andarmos a distribuir os panfletos e o Avante, na nossa escola. Afinal com quatorze e doze anos também fomos actores principais na revolução das flores humildes.  Aquele também passaria a ser o nosso dia.


E não estávamos enganados, apesar dos desvios, das frustrações, dos inconseguimentos, esse dia ninguém nos tira de ter sido um dos melhores da nossa vida.

Lembro-me agora desse móvel, o que será feito dele?

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