Que árvores são estas que não lhes sabemos o nome? São árvores da vida e
basta esse nome. Na rua as árvores perfiladas acompanham um carreiro de prédios
baixos, anos setenta, agora com estilo, com uma pala de cimento na entrada e um
alpendre, que seria galeria aberta se os prédios tivessem outro porte. Pequenas
lojas, com uma moldura de vidro, quadrada, a montra.
Do outro lado da rua, vivendas familiares. Pela sua dimensão e porque
quase todas têm as portadas e os estores meio-corridos, sinal que são casas
habitadas, não escritórios e têm cães que ladram.
Um subúrbio, um dormitório de pessoas normais. A rua não tem um café nem
uma mercearia e os carros passam em fluxos, de manhã cedo a saída para o
trabalho, ao fim do dia o regresso a casa. Também as pessoas. Durante a semana
velhos que vão provavelmente às compras, ao centro de saúde, fazer análises,
crianças ainda pequenas pelas mãos levadas para a escola. Igualmente em fluxos,
de manhã adultos e jovens passeiam os cães, ao final da tarde, mais jovens,
passeiam os cães.
E podia resumir-se a isto, desinteressante quase, a rua. Mas todas as
ruas, sejam elas grandes ou pequenas têm a sua vida desconhecida. Nenhum voyeur,
por muito tempo que tenha para gastar em nada, passa um dia inteiro de todas as
horas, debruçado sobre a janela a olhar para a rua e a captar todos os
episódios.
Só uma câmara oculta, mas isso seria violar a privacidade da rua, pôr a
nu a sua intimidade, não é aceitável.
A artista que não é da zona, passou um dia por ali. Por passar. Julgava ela
isso, quando depois comentava a novidade da sua descoberta, não sabendo que nem
ela nem ninguém passam por passar por lado nenhum, existe intenção.
Sendo artista e mais sensível pelo convívio com as coisas belas, foi o
sol que a ancorou ao sítio, incindindo na montra e projectando as sombras dos
recortes do caixilho de ferro que faz a moldura do vidro e da porta, nas
paredes interiores da loja.
Nessa altura, todas as lojas dos pequenos prédios da rua estavam vazias.
Alugou o espaço, instalou o seu atelier de trabalho, mas percebeu cedo
que os raios do sol nas paredes estavam ali, insistindo todos os dias, persistentes,
para realçar qualquer coisa. Então, e boa decisão, transformou a loja numa
pequena galeria de arte.
Uma montra colorida numa rua simples de pouca gente e movimento. Contente
com a decisão tomada e por dar uso aos raios do sol que passaram a ter uma
ocupação diária, luminescentes dos objectos expostos nas paredes brancas, alguns,
minimalismos de grande complexidade.
Algum tempo passou dela tomar posse do lugar de trabalho, de ganhar
confortos, e a rua e os seus seres vivos ou espectrais, seguiu com as suas
rotinas.
Um dia de manhã ao abrir a porta da montra, reparou que havia um pequeno
papel dobrado, no chão. Talvez uma conta, um aviso. Desdobrou o papel e tinha
uma pequena frase escrita à mão: “gosto muito da sua montra, deixa-me
contente para o resto do dia.”
Não é comum as pessoas exporem as emoções ao desconhecido. As pessoas
são contidas. A galerista, pode-se chamar assim para não se revelar o nome
próprio que é uma propriedade sua, surpreendeu-se. Dias depois, o episódio
repetiu-se. Nova mensagem, de outra pessoa, porque a letra era diferente e o
papel também. “Desanuviou-me o dia. Obrigado.”
Mais mensagens foram enfiadas por baixo da porta, que se poderiam agora
dizer e tantas outras, como: “A sua montra salta-me para dentro dos olhos,
fico encadeada de cor”, e a galerista começou a vestir a montra pensando no
prazer que isso poderia trazer aos transeuntes. Visitantes e usufruidores
externos, que muito provavelmente ela jamais viria a conhecer, no entanto, os
grandes apreciadores das obras que ela expunha. Em momentos de trabalho deu-se
por vezes a olhar para fora e tentar adivinhar em quem passava, o passante com
um cão, um idoso encurvado na direcção dos bicos dos sapatos, como um possível mensageiro
das frases manuscritas embrulhadas em papéis comuns. Era um esforço de
adivinhação que fazia, mas nunca teve certezas e afinal não passava de um
pequeno jogo sem mais interesse que o facto momentâneo de interromper o
trabalho e olhar para a rua, a espairecer.
A rua, a montra e as árvores que silenciosas assistem a tudo com uma
sabedoria superior, têm uma vida secreta, que na realidade não é.
Cada vez há mais mensagens por debaixo da porta. Frases gentis, polidas,
elogiosas, animadoras, desafiadoras.
A galerista, que expõe num lugar improvável e que abre esporadicamente as portas para o público escasso, de amigos e um punhado de outros, tem afinal uma audiência do tamanho de um mundo, o daquela rua com árvores belas e desconhecidas, casas de cores suaves com cães que ladram porque o devem fazer, e uma fileira de prédios datados, com lojas no rés-do-chão e montras onde o sol entra sem pedir licença, para dar brilhos superlativos a objectos belos sem pretensões senão iluminar o dias dos seres que passam.
*Galeria na montra - Caxias
Na aldeia de S.Luís no Alentejo há um festival de montras, acho que é o único que conheço. Durante a pandemia senti falta de andar nas ruas e ver montras, acho que só aí notei o quanto me faziam falta e podiam ser bonitas.
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