O meu pai tinha sorte com os
números, dizia ele. Uma vez, o meu avô esteve hospitalizado, não sei porquê,
mas nada de grave, e ele foi visitá-lo. Quando saiu ficou com o número da cama
onde ele estava a ecoar na cabeça. Era o número doze. Incomodado por uma fé súbita
e muito intensa, palavras suas, comprou uma cautela de lotaria com essa
terminação. Saiu-lhe o prémio grande e tivemos o nosso primeiro automóvel, um
Toyota amarelo, com dois patos colados, nas laterais do capot. Já tínhamos
uma moto (a minha) amarela, um capacete (o meu) amarelo e a agora um carro. Não
sei se o meu pai pretendia açambarcar para si todo o amarelo do mundo, mas
estava no bom caminho (e dos patos então nem falar. Penso que era para incomodar
as pessoas, principalmente a mulher e os filhos, ele gostava disso, apesar de lhe
termos dito inúmeras vezes que não era uma boa ideia).
Tendo uma viatura, tínhamos de lhe dar uso e fomos à
descoberta do Algarve, a cidade de Lagos. Ficámos num quarto alugado, com
banhos mesmo na esquina de quem saía, à direita, do nosso quarto, e com
refeições completas num tabernáculo familiar, propriedade da nossa senhoria,
que na altura, vai para cinquenta anos, o alojamento local dava os primeiros
passos, pela mundivisão de alguns empreendedores algarvios.
Porque ficámos à beira de ser ricos, o meu pai resolveu
realizar mais um sonho que tinha, pescar. Comprámos o equipamento essencial e ele
em conversas com pescadores locais e quaisquer outros que lhe dessem conversa,
iniciou ali um processo de aprendizagem muito pouco glorioso, mas tentar tentou.
Tanto que andou anos a tentar.
Dizia a minha mãe que pescar lhe acalmava os nervos mas como
poderia isso ser se sempre que ia à pesca levava um radio portátil para ouvir o
relato de futebol, num volume para não só ele ouvir, como os peixes e toda a vizinhança?
Olhar para o mar a ouvir um relato de futebol! Era tão ansioso que mal fazia um
lançamento – se não perdesse logo tudo, pelo esticão exagerado – recolhia de
imediato a linha para confirmar se o isco estava bem preso no anzol e intacto. Por
questões aleatórias independentes da vontade do meu pai, eram mais as vezes que
o anzol e a chumbada ficavam presos nas rochas submersas.
Pescou muitos poucos peixes, mas percebia imenso de futebol.
Nessas férias, como ainda não dominava as artes da pesca na
praia, estivemos uma semana em estágio na ria, o meu pai a lançar, o anzol a
prender na rocha, e porque já tínhamos perdido muitos e apesar de ricos não
eramos assim tanto para desbaratar anzóis e chumbadas ao deus dará, ele
obrigava-me a mergulhar e ir recuperar o anzol preso, vezes e vezes sem conta. Fiquei
a odiar a pesca lúdica enquanto actividade de lazer, mas aprimorei a natação, e
se é por linhas tortas que acabamos por andar certo, devo ao meu pai, ser um
bom nadador.
O Toyota foi um carro épico.
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