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NO DIA DA RAÇA

Gosto de fardas. Deram-me um dia uns ténis brancos, uns calções brancos e uma camisola branca, de alças, com o símbolo da quinas colado no peito. Foi a minha primeira farda. Tive que a devolver. Já não me recordo mas para sair bem ensaiamos algumas vezes na escola, uma ginástica coreografada. Do que me lembro é que tinha frio nas pernas de canivete e sentia-me vaidoso. No dia a que chamavam da raça, eramos centenas de meninos, todos vestidos de igual, a cobrir por inteiro o rectângulo de relva verde do Estádio Nacional, executando essa coreografia em uníssono e sintonia, para as bancadas cheias de gente, todos virados para a tribuna para uns senhores de fato escuro. À distância não se distinguiam os rostos, era uma massa uniforme, opaca. Era na verdadeira acepção do termo, uma ginástica cueca, consigo agora ver à distância dos anos, já que efectivamente o equipamento estava mais próximo da roupa interior do que propriamente um fato de ginástica completo. Ginástica para o regime, mal alimentados mas a fazer ginástica, de estatura franzina mas a mexer os braços e as pernas, émulos dos heróis gregos, dos romanos, de todos. Nessa altura não me apercebi do aproveitamento que os senhores da tribuna estavam a fazer de mim e dos outros meninos, e só vim a saber dos efeitos nocivos da propaganda quando comecei a entender as coisas que lia e ouvia, e mesmo assim tenho uma desconfiança que por vezes ainda me escapam algumas. Naquele dia, o que eu queria mesmo, com aquela cruz quinada ao peito que não sei porquê mas dava super-poderes, qual herói de banda desenhada, era que o meu pai, algures numa dessas bancadas estivesse orgulhoso de mim, caso me conseguisse distinguir, e eu vaidoso por estar a actuar para ele. O que não sabia foi que o meu irmão tinha engolido um rebuçado, que não fez o trajecto todo e ficou retido a meio da traqueia e o meu pai, aflito, a dar-lhe pancadas para o salvar, perdeu a minha única e gloriosa actuação no dia da raça. Sai de lá a querer a farda da Mocidade, mas em casa e passado o susto, o meu pai explicou-me umas certas coisas e desisti dessa ideia. Hoje arrependo-me de ter sido colaboracionista com o regime, se bem tenha sido um episódio fugaz. Nem uma sandes e um sumo nos deram.

 

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