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O AR QUE RESPIRAMOS




Nasci num domingo, pelas sete horas da manhã sem ter nenhuma noção de que estava a nascer. Não me ouvi gritar em pânico com a exigência desconhecida de ter de respirar e não saber como o fazer; não me lembro de dores de expulsão do paraíso; se fiquei ou não encadeado com o excesso de luz, é experiência que não ficou registada. Nasci anonimamente e sem relatos pessoais, como penso que nascemos todos nós, a não ser que alguns, por mecânicas que não estou agora a apanhar, tenham tido consciência e participação nesse momento.

Depois de nascer, não tive outro remédio que vingar, já que estava aqui, pelo que mamei o máximo que pude, reclamei quando tive fome, e dormi entre refeições, porque dizem que dormir faz crescer, e nisto as crianças levam, porque não têm outra opção, as regras à risca.

Sempre me disseram que eu e a minha mãe estivemos às portas da morte naquele dia santo, às sete horas da manhã. A minha mãe aceito que o estivesse, agora eu, se ainda não tinha nascido como pude estar às portas da morte? Só existimos quando estamos cá, somos vistos, reconhecidos, temos nome, ou também posso estar enganado. A coisa resolveu-se mas o que é certo é que a minha mãe nunca me perdoo e sempre que se lembrava e tinha oportunidade, anunciava, estivesse onde estivesse e com quem estivesse, que eu nasci roxo e ofegante e que ela teve de levar uma transfusão senão ia-se desta para melhor, espera-se, que pode ser o contrário, ou mesmo nulo. Ela teve sorte e sobreviveu. Foi pela falta de ar que, segundo a minha mãe, tinha ficado assim. Ela ou eu? E ouvi este comentário vezes sem conta e não percebia porque tinha ficado assim, porque assim era como eu era e comparando até, estava a meio, nem mal nem bem. Havia outros meninos muito piores. Não me cansei, durante toda a vida que andamos juntos, de lhe pedir desculpa, e ela sempre a dizer que esteve às portas da morte e desde aquele dia, nunca mais tinha sido a mesma. Pudera, tinha sido mãe, e isso altera muita coisa. Quanto a eu ter ficado assim, é tema que me incomoda, quando me lembro dele. Tenho respirado o mais que posso, com a preocupação que me faça falta e possa ainda agora, passadas décadas, vir a recuperar essa anoxia momentânea e incómoda que tive ao nascer, apesar e reafirmo com sublinhado, que não me lembro e como tal descarto mão nisso.

Dizem que a falta de oxigénio no cérebro, depois de uns minutos, apouca as pessoas, tanto, até as poder apoucar totalmente. Espero que isso em mim não se note muito. Em todo o caso, se for um conseguido imbecil, não poderei ter consciência disso, e a culpa não é minha: foi porque nasci roxo.

Comentários

  1. Todos os filhos ao nascer mudam a vida das mulheres, sem dúvida. Mas se nascer "roxo", é verdade que a mudança pode ser um pouco maior e mais profunda:)
    Também tive uma filha à qual não consegui ver bem a cor mas tinha Apgar 7 e claro nunca mais esqueci o susto...mas fiquei eternamente grata por ela ter vingado e ter hoje tantas cores.
    ~CC~

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