Fazia frio. «O menino não tenha medo que não fazemos mal ao seu paizinho». O menino não sabia ainda se tinha medo, só estava perplexo a ver o seu pai ser lavado por uns senhores de fato tão negro como se pintava ainda essa noite. Fazia frio e escuro. O menino, tão menino ainda, sabia ao que eles vinham: encarcerar o pensamento. E se era por isso que eles levavam o seu pai, ocuparia ele o seu lugar, o lugar da cidadania. Pai não te preocupes eu faço o trabalho por ti.
Ao fim da manhã, vindo da escola primária onde os meninos estão também separados das meninas por um muro, a caminho de casa na rua soldados da India, na parede branquíssima a perder de vista, o muro dos Altos Estudos Militares, ele vai pintar em vermelho veemente, uma foice e um martelo.
Os senhores carvão que gralham como corvos não podem levar o menino, e ele sabe isso, e ele aproveita-se disso, não podem encerrá-lo numa cela escura. Se o fizessem ficariam sem meninos e um país sem meninos não existe mais. Perde-se o futuro em brumas.
O pai foi preso mas voltaria a sonhar com a utopia e um dia, que se andava a anunciar, o céu limpou os farrapos sujos das nuvens e num fenómeno estranho e único, todas as flores, em uníssono de si, floresceram no calor do sol que as enamorou.
O menino entretanto cresceu, fez-se homem, fez-se pai, fez-se avô e não deixou de cantarolar para o neto aquelas canções que seu pai cantava para si. Poemas sobre quimeras.
O Pedro esteve preso e fê-lo por todos nós que fomos o seu futuro. Andamos de novo distraídos e os corvos que rondam já se anunciam.
Vamos lá cantar as janeiras, todos juntos que se ouve melhor.
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