“Amália
Maria,
Descarto-te,
porque me desapeguei de ti. Afrouxei-me de sentimentos. Esfriei.
O início.
No início é sempre arejado. É como colher flores do campo - ou imaginando pateticamente
a fazer isso –, andar aos saltos de mão dada em doces montanhas, como no filme
“Música no coração”. Mas depois de se ver tantas e tantas vezes esse filme, de
levar ao limite a imaginação, acabamos por detestar o campo, as suas flores
falsamente coloridas que serão sempre a preto e branco e aquelas canções
melosas, lúgubres apesar de darem sinais contrários, umas dissimuladas.
A nossa
vida deixou de ter odores fortes, muito menos fragâncias frescas.
Deixei há
muito de sonhar que chegados a velhos partilharia contigo a mesma manta dos
pés. Para mim és , apesar da idade o desmentir, uma velha prematura.
Tomei a
decisão difícil, mas irrevogável de não repartir contigo nem ninguém as minhas intimidades físicas e as disrupções mecânicas e outras do meu corpo. Quero
libertar as minhas descargas de ar acumulado onde me aprouver e quando me
aprouver, sem que desrespeitem os meus ares.
Por tudo
isto e pelo motivo maior, estou agora a escrever esta carta derradeira, porque
deixei de gostar dos teus pequenos defeitos no momento em que me atraiçoaste.
Não foi
um adultério, não houve terceiros no assunto, nem a palavra sexo é chamada a
depor. Foi dentro da nossa própria casa, no bastião do lar, “no meio de nós”,
como diria Deus se fosse achado para um assunto doméstico.
Arremataste
a outro o Amor que me apregoavas, com ventos e leviandades ao sair da boca. E
esse outro é sangue do meu sangue, não o posso culpar.
Alimentas
um adultério filial na tua cabeça, o pecado mais ignominioso. Nasceu ele e imediatamente fizeste a
transferência. És uma transformista cobarde. Eu, abandonado, à condição de um
utilitário doméstico.
Deixei de
ocupar todas as divisões do teu coração no dia em que nasceu o nosso filho. Fui
recambiado para uma cave obscura do teu ventríloquo - nem sei se o direito ou o
esquerdo. Continuo vivo mas é como se não o estivesse, transfigurei-me sem
saber numa existência apagada, um morto-vivo, omitido para sempre. Deste-me a estocada
fatal.
Sim
senhor diriges-te a mim educadamente, sou útil para levar o menino às urgências
do hospital e perder uma noite inteira, porque o menino tem pieira e a mãe é
ansiosa; não faço outra coisa senão mudar fraldas cagadas a horas escandalosas;
fico a embalar o baby quando precisas de espairecer e sais até as quatro horas
da manhã para um jantar com as amigas, que dura até essa hora porque Lisboa
está na moda e os restaurantes estão muito cheios e espera-se muito pela vez,
de mesa.
Mas a
verdade é que fizeste uma transferência do amor, e eu parvo, só percebi que já
estavas na fase do menosprezo, quando num domingo de manhã acordei e vi que se
atravessava um travesseiro entre nós. E tu, como uma múmia, enrolada nos
lençóis abraçada ao teu mais do que tudo. Criaste uma barreira intransponível
com lençóis de seda!
Mas se é
isso que queres, se foi para isso que servi, então excomungo-te do teu pecado
do abandono, da omissão; expurgo-te de mim.
No
momento em que sair desta porta para fora, nunca mais me pões a vista em cima,
que é o que provavelmente mais anseias. Faço-te a vontade, dou-te a pensão de
alimentos, mas levo comigo a nossa empregada Valdívia, que me faz falta. Tu,
começa a lavar a louça que o mereces e muito mais, principalmente os fundos das
panelas dos refugados.
Para o
nunca mais,
O já não
teu
Emiliano”.
Comentários
Enviar um comentário