Ando na rua, vou para casa e escrevo. É a minha inspiração. Se
isso é ficção ou realidade, não sei. Custa-me distinguir. Ainda ontem, sim, foi
ontem que choveu bastante e ventanou
como se mais não houvesse. Estava macambúzio e fui para a Baixa, gastar dinheiro,
não tenho, mas hoje em dia não é preciso ter para se gastar. Em todo o caso
fui, comprar presentes de Natal, as lojas agora fecham mais tarde e a animação
dos turistas, desde que somos o melhor destino do mundo inteirinho, dura até as
tantas, tarde portanto. Fui e deixei-me ficar, embalado pelo movimento das
ruas, os sons dos músicos nas esquinas, o cheiro da castanha assada a preços de
nova iorque, e a simpatia da gente bonita, colorida, que por cá anda, curiosa,
a querer saber das nossas coisas, da cultura e assim. Acabei por petiscar e
como chovia e eu gosto da chuva e é rara, decidi ir a pé apanhar o comboio ao
cais do Sodré, rua augusta abaixo, na direção da praça do comércio, rua dos bacalhoeiros,
e é um instante, faz-se num nada, e tudo em minúscula, agora é assim. Desinteressados
dos turistas e estes deles, dormiam, supõem-se que dormiam, e eram pessoas
vivas de carne e osso e não enchumaços falsos, uns quantos sem-abrigo
enfileirados nas arcadas da praça. Passei por eles como se nada fosse comigo, a
disfarçar que não os via, a fazer o mesmo que os outros que no momento passaram
também por eles. Apanhei o comboio grafitado e moderno, que agora usa-se, e deixei-me
chegar a casa, calçar as pantufas e servi-me de um generoso grogue, para
reflectir esmiuçadamente sobre o assunto. E veio ao de cima esta minha teoria
que enunciei no início, de ter dúvidas do que seja a ficção e a realidade, e dai
confundir as duas e misturar, e até achar que tenho tardiamente alguma espécie minor de dislexia, se isso existe e pode
dar-se tardiamente, na idade adulta. Se é verdade que aqueles anarquistas eram
desalojados temporariamente permanentes de casas que já tiveram, e sendo o
melhor destino, este, ganhador de todos os prémios que há para ganhar, parece
que está a competir com aquele jogador de caricas famoso que diz que é o melhor
de sempre e para sempre, apesar de se aceitar com um sorriso porque foi um
rapaz necessitado e quando se é necessitado e depois se tem sucesso, fica entranhado
como tique essa ideia de se ser o
maior-melhor, não se está a ver que as pessoas com responsabilidade e sérias
que tratam das coisas das cidades não
tenham pensado nisso e não tenham resolvido adequadamente essa questão, para
não dar uma imagem errada, aos que nos visitam e vêm à espera do melhor destino,
para visitar, sem terem que tropeçar num desgraçado que por alguma e qualquer
razão sua, egoísta, esteja ali naqueles preparos a dar mau aspecto e enfeiar as cidades que se querem o
melhor destino por muitos e bons anos. Com isto, fiquei na dúvida, e quando se
autoriza a dúvida a entrar em nós, para a desalojar é a carga de trabalhos, não
vai com vomitórios, clisteres, ervas, colheres de carvão, nada. É uma peçonha
para a vida. As pessoas emagrecem porque a dúvida consome as energias e as
gorduras. Digo que fiquei na dúvida de estar a pensar bem ou a alucinar, sendo
que esta última se adequa melhor ao meu carácter e da primeira, porque tenho a
doença precisamente da dúvida, não tenho a certeza de ser possuidor, quero
dizer, pensar bem. Para não vir a ter
problemas a adormecer conclui por certo ter ficcionado ou lido algures e a
seguir ficcionado, que há desabrigados a dormirem nas arcadas da praça do
comércio, local muito bonito de passeio para os turistas e os escassos
habitantes da cidade. Problema mesmo é esta inspiração que podia dar para puxar
brilho a móveis em vez de dar para escrever, que dá nisto, um redondeio sem pés
nem cabeça.
Eram berlindes e guelas, os primeiros mais pequenos, os outros, mais vistosos, abafavam os berlindes. Eram de vidro cheios de cor, muitas, com padrões que davam ao girar a sensação de movimento encantatório. Compravam-se nas papelarias de bairro, pequenas superfícies habitualmente familiares que vendiam de tudo de uma forma absolutamente eficaz e personalizada. Estabelecimentos, não superfícies, designações de um presente deselegante, um nome que soa estranho e é frio. Os proprietários e os empregados sabiam os nossos nomes. Podíamos levar e pagar depois, numa contabilidade honesta que se fazia no livro dos devedores, preenchido a lápis de carvão. Este calhamaço era uma história do negócio, onde se desfiavam listas de nomes e produtos e datas. Raramente era usado para lembrar os atrasos: ninguém queria estragar relações de boa vizinhança, num tempo em que a honra e a honestidade eram valores não transacionáveis. Uns buracos no chão com uma distância entre si, medi...
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